Meu querido José,
Depois de duas semanas, eis-me de
volta. Sinto-me, novamente, parte do mundo e do movimento constante. Ah! O que
é a vida senão esse viajar e este cosmopolitismo que muitos vêem como
diletante! Cidades, amo, jovem José, como o senhor Reis amou as rosas. As rosas
e Lídia, pois não acredito que tivessem somente enlaçado as mãos, até porque um
tio meu, Francisco de Sousa, chegou a conhecer essa tal Lídia na flor dos seus
trinta e poucos anos!
Pois bem, viajei, li, comi, conheci!
Eis o resumo destas duas semanas. Revisitei amigos e lugares. Eis a Europa! Eis
a civilização. O Efraim disse-me que escreveu emails para a minha caixa de
correio virtual, mas não os li, nem um! Enfim, lá lhe respondi um “estou bem”.
Melhor dizendo, respondeu o Efraim por mim, já que sabe bem da minha aversão às
bugigangas deste século de betão armado, escândalos e vigarices!
Envio-lhe um dos mais breves textos do
sempre impublicável Cadernos de Nicosia,
até porque outros textos são muito longos e o Efraim também precisa descansar,
não vou mandar o pobre semita copiar manuscritos quando nem quatro horas
dormiu. Além do mais, estimo-o, e nunca fui masoquista, senão comigo mesmo.
Pois bem, jovem pós-moderno, (ou
prefere que escreva post-moderno, pois já notei que escreve com o prefixo
latino, doidices!) aqui vai o texto. Venha cá jantar, amanhã, traga (…). Mande
resposta assim que puder.
Um abraço do Efraim que já deve roncar.
Outro meu, do seu
Gonçalo V. de S.
"Descida ao piano"
Desço
a escadaria que me leva aos propósitos que um dia semeei. De lá, passo por
entre os jardins pintados em atmosferas interiores e íntimas, com um desejo de
lampiões de gás numa cidade quadro de Cesário. Cidade que não Lisboa. Esmago
qualquer ânsia de voar mais alto, mais alto do que todos os voos de uma
primeira juventude. Que fiz eu da minha primeira juventude? Espingardas
mentais, revoluções e metafísica.
Cresci
entre os tons verdes e azuis, numa casa caiada de sol e de muito céu. Um céu
grandiosamente azul. Um azul de todas as cores. Mas nada disto interessa. O
piano é uma paisagem de fundo, de azuis esfumados e pensativamente reais. Tudo
fica sempre pela metade, como um ante-intervalo.
A
minha casa fica para lá deste hotel, para lá de todo este mar e de todos os
montes peninsulares que adormecem virados para Oriente. Para o Oriente que é o
Ocidente do Oriente em que me encontro.
Nicosia é este ante-estar, este entre-estar,
fenda de mundos e civilizações.
Em tons impressionistas, calco as folhas
do jardim do hotel, quando a noite pinta a tela que é o mundo com cores
diáfanas, calmas, líquidas.
Que fiz eu da vida Efraim? (Efraim
enche-me o copo outra vez).
Sinto-me numa constante descida ao
piano. A um piano que existe em noites como estas, religiosamente quentes e
longas. Noites que duram para sempre.
Qual o propósito de tudo isto? Lembro-me
da liberdade proclamada em tons vivos e vermelhos, de um vermelho de sangue que
jorra compulsivamente. Que fizemos nós da liberdade?
Sinto-me demasiado filosófico e nunca
tive senão respeito e distância por todas as filosofias. Sorvê-las até certo
ponto, como um beija-flor que recolhe o néctar de todas as plantas do mundo,
não sendo portador exclusivo de uma só. Assim deveríamos ser na vida. Mas se
penso nisto filosofo e não mo posso permitir. Por vezes até me lembro do pastor
dos rebanhos que eram ficções e acabo por sorrir enquanto sorvo o último hausto
deste líquido âmbar, filho de gerações perdidas e de segredos semi-guardados.
Estou como o Carlos e como o Ega, “tenho
a alma numa latrina. Preciso de um banho por dentro.”
Mas tudo é mentira. Pelo menos, tudo
parece mentira. Não interessa.
Calo-me e as palavras deixam de existir. Para
Sempre.
Entrei de alma e cabeça nesse texto. Lindo!!!
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