sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - o flâneur das sensações




Meu querido José,

Depois de duas semanas, eis-me de volta. Sinto-me, novamente, parte do mundo e do movimento constante. Ah! O que é a vida senão esse viajar e este cosmopolitismo que muitos vêem como diletante! Cidades, amo, jovem José, como o senhor Reis amou as rosas. As rosas e Lídia, pois não acredito que tivessem somente enlaçado as mãos, até porque um tio meu, Francisco de Sousa, chegou a conhecer essa tal Lídia na flor dos seus trinta e poucos anos!
Pois bem, viajei, li, comi, conheci! Eis o resumo destas duas semanas. Revisitei amigos e lugares. Eis a Europa! Eis a civilização. O Efraim disse-me que escreveu emails para a minha caixa de correio virtual, mas não os li, nem um! Enfim, lá lhe respondi um “estou bem”. Melhor dizendo, respondeu o Efraim por mim, já que sabe bem da minha aversão às bugigangas deste século de betão armado, escândalos e vigarices!
Envio-lhe um dos mais breves textos do sempre impublicável Cadernos de Nicosia, até porque outros textos são muito longos e o Efraim também precisa descansar, não vou mandar o pobre semita copiar manuscritos quando nem quatro horas dormiu. Além do mais, estimo-o, e nunca fui masoquista, senão comigo mesmo.
Pois bem, jovem pós-moderno, (ou prefere que escreva post-moderno, pois já notei que escreve com o prefixo latino, doidices!) aqui vai o texto. Venha cá jantar, amanhã, traga (…). Mande resposta assim que puder.
Um abraço do Efraim que já deve roncar.
Outro meu, do seu

Gonçalo V. de S.


"Descida ao piano"

            Desço a escadaria que me leva aos propósitos que um dia semeei. De lá, passo por entre os jardins pintados em atmosferas interiores e íntimas, com um desejo de lampiões de gás numa cidade quadro de Cesário. Cidade que não Lisboa. Esmago qualquer ânsia de voar mais alto, mais alto do que todos os voos de uma primeira juventude. Que fiz eu da minha primeira juventude? Espingardas mentais, revoluções e metafísica.
            Cresci entre os tons verdes e azuis, numa casa caiada de sol e de muito céu. Um céu grandiosamente azul. Um azul de todas as cores. Mas nada disto interessa. O piano é uma paisagem de fundo, de azuis esfumados e pensativamente reais. Tudo fica sempre pela metade, como um ante-intervalo.
  A minha casa fica para lá deste hotel, para lá de todo este mar e de todos os montes peninsulares que adormecem virados para Oriente. Para o Oriente que é o Ocidente do Oriente em que me encontro.
Nicosia é este ante-estar, este entre-estar, fenda de mundos e civilizações.
Em tons impressionistas, calco as folhas do jardim do hotel, quando a noite pinta a tela que é o mundo com cores diáfanas, calmas, líquidas.
Que fiz eu da vida Efraim? (Efraim enche-me o copo outra vez).
Sinto-me numa constante descida ao piano. A um piano que existe em noites como estas, religiosamente quentes e longas. Noites que duram para sempre.
Qual o propósito de tudo isto? Lembro-me da liberdade proclamada em tons vivos e vermelhos, de um vermelho de sangue que jorra compulsivamente. Que fizemos nós da liberdade?
Sinto-me demasiado filosófico e nunca tive senão respeito e distância por todas as filosofias. Sorvê-las até certo ponto, como um beija-flor que recolhe o néctar de todas as plantas do mundo, não sendo portador exclusivo de uma só. Assim deveríamos ser na vida. Mas se penso nisto filosofo e não mo posso permitir. Por vezes até me lembro do pastor dos rebanhos que eram ficções e acabo por sorrir enquanto sorvo o último hausto deste líquido âmbar, filho de gerações perdidas e de segredos semi-guardados.
Estou como o Carlos e como o Ega, “tenho a alma numa latrina. Preciso de um banho por dentro.”
Mas tudo é mentira. Pelo menos, tudo parece mentira. Não interessa.

 Calo-me e as palavras deixam de existir. Para Sempre.

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