Então eu não existo!, respondeu-me
Gonçalo.
Gonçalo parecia desiludido com as minhas
afirmações e perguntas, questionando-me acerca da existência dos seus
familiares e dos amigos destes.
Oiça, meu jovem, continuava aquele que
seria o flâneur já o sendo há bastante tempo, eles existiram tanto como nós
existimos. É tão real a foto de meu avô com Carlos Fradique Mendes e a
correspondência que trocaram como estas tílias que se encontram à nossa frente.
Meu avô ficou muito amigo de Fradique
Mendes a partir dessa inesperada tarde sobre o Nilo.
De tão amigos que ficaram, meu caro
jovem, meu bisavô deu o nome de Carlos a meu avô que nascera nesse mesmo ano em
Outobro: Carlos Viana de Sousa. Um homem que viveu uma longa e complexa vida!
Só viria a falecer em 1965, poucos anos antes da minha vinda para esta que já
foi, outrora, a Vetusta e Veneranda Universidade de Coimbra. Gonçalo falava da
Universidade com um certo sorriso saudoso e, ao mesmo tempo, angustiado,
entristecido. Talvez aquele “outrora” fosse para o nosso flâneur um traço de
Decadência, coisa decente em gerações mais antigas e delicadas, mas que, a meus
olhos, surgia como algo démodé e ao mesmo tempo atualíssimo, vulgo síndrome da
geração dourada, perdida, escolham o termo psicologista mais adequado os leitores,
pois eu já fiz a minha decisão.
Mas como é que é possível não haver
registo algum de Carlos Fradique Mendes para além da Correspondência que este
teve com Eça e algumas outras personalidades? Como é possível que tudo esteja
perdido?
Nada se perdeu, jovem. Tudo ou quase
tudo foi parcialmente queimado. As poucas fotos que sobraram, assim como
correspondência inédita, encontram-se por Lisboa, em Sampetersburgo, em Angola,
e no espólio da minha família.
Cada vez ficava mais absorto com estas
afirmações daquele que seria o meu flâneur. No entanto, deixei-o falar
livremente, como um pássaro que planeia altos voos pelas manhãs de março,
quando ainda se sente o orvalho nas pontas das folhas mais delicadas. Meu
bisavô e meu avô guardaram, religiosamente, alguma correspondência e duas fotos
desse grande maganão, dizia Gonçalo com um esgar de olho um pouco infantil para
o seu prelúdio da idade dourada (quanto a esta última expressão, à época não
seria capaz de a escrever com esta desenvoltura e à-vontade, visto que foi
graças a este nosso flâneur que aprendi a criar muitas destas paisagens mentais
que se desfiam em palavras que soam a algo definitivo).
Depois de Gonçalo ter terminado o seu
longo falar acerca de Fradique e o bisavô e as aventuras e peripécias por que
passaram em Paris, em Londres e em Viena (não interessa, por ora, fazer relato
dessas histórias pois não vêm ao caso), lancei uma pergunta que de inocente só
tinha o facto de o não ser: quer então dizer que o senhor me pode mostrar
alguma dessa correspondência!
O nosso homem olhou para mim e sorriu,
pronta e positivamente respondendo, é claro que sim, jovem frenético. Foi a
primeira vez que Gonçalo me chamou jovem frenético, uma das suas epítotes
preferidas quando fala comigo.
Claro que lhe posso mostrar toda essas
correspondência, mas não hoje meu jovem, nem agora, pois parto esta madrugada
para o País de Gales. Fique com o meu contacto. Gonçalo retira do bolso do seu
belo casaco, chic, um cartão ainda
mais elegante, de um azul marinho líquido, com umas negras letras que diziam:
Gonçalo Viana de Sousa, Coimbra, Portugal, Mundo. Mais abaixo continha a
morada, sita na Rua do Brasil, aliás, residência ainda hoje oficial do nosso
flâneur. O facto de me dar aquele cartãozinho comportava em si toda uma cerimónia
que me levava até aos finais do século XIX, até que ao longe se ouve uma vez
com um exótico sotaque chamando pelo “sinhor Viana de Sousa”. Era o formidável
Efraim, o constante butler, que num passo rápido, meio travadinho e nervoso,
acenava e chamava pelo nosso homem, com medo que este chegasse atrasado a um
jantar que havia marcado com o senhor bispo de Coimbra, à época o D. Albino
Cleto.
Despedimo-nos com um até breve. Fiquei a
mirar aquele interessantíssimo homem que andava com uma elegância e graciosidade
de um príncipe bávaro. Fechei o meu livro, sorri e o céu continuou
universalmente igual e indiferente.
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