quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Como conheci Gonçalo - IV

Então eu não existo!, respondeu-me Gonçalo.
Gonçalo parecia desiludido com as minhas afirmações e perguntas, questionando-me acerca da existência dos seus familiares e dos amigos destes.
Oiça, meu jovem, continuava aquele que seria o flâneur já o sendo há bastante tempo, eles existiram tanto como nós existimos. É tão real a foto de meu avô com Carlos Fradique Mendes e a correspondência que trocaram como estas tílias que se encontram à nossa frente.
Meu avô ficou muito amigo de Fradique Mendes a partir dessa inesperada tarde sobre o Nilo.
De tão amigos que ficaram, meu caro jovem, meu bisavô deu o nome de Carlos a meu avô que nascera nesse mesmo ano em Outobro: Carlos Viana de Sousa. Um homem que viveu uma longa e complexa vida! Só viria a falecer em 1965, poucos anos antes da minha vinda para esta que já foi, outrora, a Vetusta e Veneranda Universidade de Coimbra. Gonçalo falava da Universidade com um certo sorriso saudoso e, ao mesmo tempo, angustiado, entristecido. Talvez aquele “outrora” fosse para o nosso flâneur um traço de Decadência, coisa decente em gerações mais antigas e delicadas, mas que, a meus olhos, surgia como algo démodé e ao mesmo tempo atualíssimo, vulgo síndrome da geração dourada, perdida, escolham o termo psicologista mais adequado os leitores, pois eu já fiz a minha decisão.
Mas como é que é possível não haver registo algum de Carlos Fradique Mendes para além da Correspondência que este teve com Eça e algumas outras personalidades? Como é possível que tudo esteja perdido?
Nada se perdeu, jovem. Tudo ou quase tudo foi parcialmente queimado. As poucas fotos que sobraram, assim como correspondência inédita, encontram-se por Lisboa, em Sampetersburgo, em Angola, e no espólio da minha família.
Cada vez ficava mais absorto com estas afirmações daquele que seria o meu flâneur. No entanto, deixei-o falar livremente, como um pássaro que planeia altos voos pelas manhãs de março, quando ainda se sente o orvalho nas pontas das folhas mais delicadas. Meu bisavô e meu avô guardaram, religiosamente, alguma correspondência e duas fotos desse grande maganão, dizia Gonçalo com um esgar de olho um pouco infantil para o seu prelúdio da idade dourada (quanto a esta última expressão, à época não seria capaz de a escrever com esta desenvoltura e à-vontade, visto que foi graças a este nosso flâneur que aprendi a criar muitas destas paisagens mentais que se desfiam em palavras que soam a algo definitivo).
Depois de Gonçalo ter terminado o seu longo falar acerca de Fradique e o bisavô e as aventuras e peripécias por que passaram em Paris, em Londres e em Viena (não interessa, por ora, fazer relato dessas histórias pois não vêm ao caso), lancei uma pergunta que de inocente só tinha o facto de o não ser: quer então dizer que o senhor me pode mostrar alguma dessa correspondência!
O nosso homem olhou para mim e sorriu, pronta e positivamente respondendo, é claro que sim, jovem frenético. Foi a primeira vez que Gonçalo me chamou jovem frenético, uma das suas epítotes preferidas quando fala comigo.
Claro que lhe posso mostrar toda essas correspondência, mas não hoje meu jovem, nem agora, pois parto esta madrugada para o País de Gales. Fique com o meu contacto. Gonçalo retira do bolso do seu belo casaco, chic, um cartão ainda mais elegante, de um azul marinho líquido, com umas negras letras que diziam: Gonçalo Viana de Sousa, Coimbra, Portugal, Mundo. Mais abaixo continha a morada, sita na Rua do Brasil, aliás, residência ainda hoje oficial do nosso flâneur. O facto de me dar aquele cartãozinho comportava em si toda uma cerimónia que me levava até aos finais do século XIX, até que ao longe se ouve uma vez com um exótico sotaque chamando pelo “sinhor Viana de Sousa”. Era o formidável Efraim, o constante butler, que num passo rápido, meio travadinho e nervoso, acenava e chamava pelo nosso homem, com medo que este chegasse atrasado a um jantar que havia marcado com o senhor bispo de Coimbra, à época o D. Albino Cleto.

Despedimo-nos com um até breve. Fiquei a mirar aquele interessantíssimo homem que andava com uma elegância e graciosidade de um príncipe bávaro. Fechei o meu livro, sorri e o céu continuou universalmente igual e indiferente.

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