quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Perguntei... Maria Manuel Viana respondeu


Rodrigo Ferrão: O que achas? "Não ser assediada" é um direito que não é devidamente protegido, pois não?

Maria Manuel Viana: exactamente, Rodrigo. A liberdade de uma mulher andar pela rua, esse direito de o fazer sem ser incomodada, é posto em causa. gostei muito do artigo da Fernanda Câncio ("...o chamado "piropo de rua" é uma forma de agressão e portanto - não tenhamos medo das palavras - de intimidação e dominação das mulheres. De lhes tornar claro que na rua não estão seguras; que a rua não é delas; que se "habilitam". E isto desde meninas, e à bruta, para aprenderem (aprendermos) a lição.

Contra a penalização formal destes comportamentos ridiculariza-se; alega-se o não terem "dignidade penal", ou até a "defesa da liberdade de expressão". Tem piada: é mesmo em nome dessa liberdade total de expressão, verbal e física, que em certos países as mulheres ou ficam em casa ou só saem de burqa.(...)"). E todas nós, mulheres, passámos por situações destas, como as relatadas nos vídeos de Bruxelas e Nova-Iorque. Às vezes, dava voltas enormes para não ter de passar perto de nenhum grupo de homens. O lambia-te toda era das mais usuais, a par com o comia-te ou fodia-te toda. Mas tenho verificado, em conversa com muita e variada gente, que não é nada consensual, esta posição, e nem estou a falar dos homens, que tendem a desvalorizar, provavelmente porque não conseguem imaginar a violência que é ouvir frases destas. Conheço mulheres que acham que isto lhes aumenta a auto-estima, que as valoriza, que as torna desejáveis, como se o piropo as individualizasse e não, pelo contrário, as reduzisse a alguns buracos; outras que reagiam, dizendo: então anda cá, a ver se és capaz. A expressão "mulher séria não tem ouvidos" era um mantra em todas as famílias e, se nos queixássemos, a culpa era nossa, que tínhamos provocado os homens. Em casos extremos, como a violação, vi muitas vezes juízes defenderem que, caso isso a preocupasse, a mulher se vestiria de outra forma, não provocando o desejo legítimo e alheio. E não foi assim há tanto tempo, nos anos 90 peguei-me com um juiz por ele defender isto. E em França, também nos anos 80 ou 90, um violador foi absolvido porque a vítima levava sapatos vermelhos, prova irrefutável de que estava a pedir para ser violada. No fundo, é uma questão de ideologia, da não igualdade, da pertença enquanto objecto a um homem, bem expressa nas metáforas alimentares, no tratamento depreciativo por tu, no direito de dizerem em voz alta o que lhes ocorre e, no limite (porque o piropo, a abordagem alvar, o convite ao sexo não são assim tão distantes de uma violação) a certeza de que, no fundo, no fundo, as mulheres até gostariam de ser violadas por homens como eles, verdadeiros artistas do sexo. As mulheres sozinhas e as dos outros, entenda-se. As deles são sérias e recatadas.

foto de Alfredo Cunha — em Póvoa de Varzim, Correntes d'escritas.

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