quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - o Flâneur das Sensações

Meu querido José,

Chegou a chuva e o frio, com o entardecer dos breves e apressados raios de Sol deste Novembro de um ano que parece de brincar. O país lá continua, coitado, de pantanas! Mas isso não interessa muito, tivéssemos cá Fradique Mendes e teríamos aí os leitores batendo com a mão no joelho dizendo, «co’a breca, que maganão este!»
Mas deixemos lá as fradiquices e as crónicas, perdidas, deste, diria Almada, “país-centavos”.
Que é feito de si, jovem sonoro? Por onde anda? Que tem feito? Tem escrito? E essas investigações? Fale-me, pelo amor dos deuses! Não recebo nem uma linha sua! Nem um breve «estou vivo, a ler compulsivamente», nada! Já nem lhe peço a nossa tarde primeira, sinto-me como uma árvore a quem prometeram a Primavera e  só trouxeram vento e frio…
Pois bem, escrevo-lhe eu, pastor de silêncios, não de rebanhos, mas de sonhos.
Mande-me novas suas pelo estafeta da meia-noite. Um punhado de linhas, basta-me para sabê-lo benzinho.
Enquanto isso, deixo-lhe mais linhas, impublicáveis, horríveis!, sobre Nicosia e o mundo, ou talvez sobre nada disso, na verdade. Escute novamente a ópera de Berlioz que lhe recomendei. Nem Paganini gostou dela quando a viu, escutou, cheirou, pela primeira vez, sabia? Parecia ter sido uma encomenda falhada! Depois, após uma segunda experiência escreveu ao excelente compositor romântico francês dizendo que era das melhores coisas que tinha ouvido para violino, e não só! Imagine quanta não deve ter sido a alegria do formidável francês ao ler a missiva do inolvidável italiano. Partilhe-a com os leitores, se os houver! Se não houver leitores, partilhe com o silêncio, pois também não é mau.
Despeço-me que a missiva já vai longa e o estafeta hoje chegou mais cedo. Parto domingo para a Croácia, jovem literariamente malandro.
Abraços de Efraim e do
Seu

Gonçalo V. de Sousa.



“Romantismo (Haroldo em Itália - Marcha dos peregrinos)"

  De que me servem as longas descrições das indescritíveis paisagens verdes, infinitas e líquidas da Baviera? De que me vale ler escorridíssimos parágrafos, tísicos de naturalismo, sobre os belos bosques ingleses, sobre as magníficas florestas francesas? Que me adianta ouvir falar do nevoeiro da serra de Sintra e do Palácio da Pena, ou da chuva que pinga e pinga, constante e magistral pela Regaleira?
Precisamos sim de realidade que se veja, cheire, oiça e sinta.
Não passará essa realidade pelo papel, perguntas-me tu, Efraim bondoso e firme. Já não sei se passará, prezado. Já não sei, Efraim. Cada vez acredito mais que a realidade está na paisagem vista, assim como a beleza Absoluta, do Futuro, estará na Ópera. Mas se digo isto sinto Wagner apertando-me os calcanhares e não posso permitir um agrilhoamento tão fácil e gratuito. Wagner não foi nenhum deus. Quando muito uma besta, e, mesmo assim, devagar.
Como viemos parar, novamente, a Wagner e aos castelos e às verdades de papel e mentiras de realidade? Não sei. Não interessa.
Nesta varanda deste cosmopolita quarto de hotel, a noite é quente e sabe a sede de algo fresco com limão. Traz-me whisky com ginger e pedras, Efraim, e algum limão. Esta noite, assim tão calma e quente e seca é como uma antecâmara do que estará para vir quando a noite for profunda e condenada à luz da manhã e das coisas mundiais. O vento levanta-se com pequenos arrufos de um hálito que parece lavanda.
Lembro-me das altas montanhas italianas. Gran Sasso e os seus tímidos lagos soprando como flautistas de Hamelin. A música inebria, apaixona e faz viver. Tal como o Romantismo. Mas no Romantismo tudo é silêncio e efusão. Ordem e Caos. Novidade e Tradição, ainda que tudo pareça ser contra a velha tecedeira do tempo e dos costumes. O Silêncio importa, acima de todas as coisas. Só o silêncio é capaz de nos revelar os segredos mais íntimos da Natureza. O sentido das coisas.
Ser romântico é ser silencioso. Somos românticos desde o momento em que entendemos a importância do silêncio.
Somos todos românticos, Efraim, quer o aceitemos, quer o neguemos com todas as nossas forças. Não adianta. O Romantismo é condição sine qua non de qualquer existência, breve ou longa, preenchida ou vazia. E no final o silêncio de um violino gemendo, enquanto Haroldo se perde pelas montanhas de uma Itália que só existe nos olhos daqueles que sabem ver o outro lado das tempestades, mesmo quando o nevoeiro é espesso. Mesmo quando as dúvidas nos esmagam com as suas certezas.
Sim, meu butler, somos românticos. O resto não interessa.




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