Meu querido José,
Chegou
a chuva e o frio, com o entardecer dos breves e apressados raios de Sol deste
Novembro de um ano que parece de brincar. O país lá continua, coitado, de
pantanas! Mas isso não interessa muito, tivéssemos cá Fradique Mendes e
teríamos aí os leitores batendo com a mão no joelho dizendo, «co’a breca, que
maganão este!»
Mas
deixemos lá as fradiquices e as crónicas, perdidas, deste, diria Almada,
“país-centavos”.
Que é
feito de si, jovem sonoro? Por onde anda? Que tem feito? Tem escrito? E essas
investigações? Fale-me, pelo amor dos deuses! Não recebo nem uma linha sua! Nem
um breve «estou vivo, a ler compulsivamente», nada! Já nem lhe peço a nossa
tarde primeira, sinto-me como uma árvore a quem prometeram a Primavera e só trouxeram vento e frio…
Pois
bem, escrevo-lhe eu, pastor de silêncios, não de rebanhos, mas de sonhos.
Mande-me
novas suas pelo estafeta da meia-noite. Um punhado de linhas, basta-me para
sabê-lo benzinho.
Enquanto
isso, deixo-lhe mais linhas, impublicáveis, horríveis!, sobre Nicosia e o mundo,
ou talvez sobre nada disso, na verdade. Escute novamente a ópera de Berlioz que
lhe recomendei. Nem Paganini gostou dela quando a viu, escutou, cheirou, pela
primeira vez, sabia? Parecia ter sido uma encomenda falhada! Depois, após uma
segunda experiência escreveu ao excelente compositor romântico francês dizendo
que era das melhores coisas que tinha ouvido para violino, e não só! Imagine
quanta não deve ter sido a alegria do formidável francês ao ler a missiva do
inolvidável italiano. Partilhe-a com os leitores, se os houver! Se não houver
leitores, partilhe com o silêncio, pois também não é mau.
Despeço-me
que a missiva já vai longa e o estafeta hoje chegou mais cedo. Parto domingo
para a Croácia, jovem literariamente malandro.
Abraços de Efraim e do
Seu
Gonçalo
V. de Sousa.
“Romantismo (Haroldo em Itália - Marcha dos peregrinos)"
De
que me servem as longas descrições das indescritíveis paisagens verdes,
infinitas e líquidas da Baviera? De que me vale ler escorridíssimos parágrafos,
tísicos de naturalismo, sobre os belos bosques ingleses, sobre as magníficas
florestas francesas? Que me adianta ouvir falar do nevoeiro da serra de Sintra
e do Palácio da Pena, ou da chuva que pinga e pinga, constante e magistral pela
Regaleira?
Precisamos sim de realidade que se veja,
cheire, oiça e sinta.
Não passará essa realidade pelo papel,
perguntas-me tu, Efraim bondoso e firme. Já não sei se passará, prezado. Já não
sei, Efraim. Cada vez acredito mais que a realidade está na paisagem vista,
assim como a beleza Absoluta, do Futuro, estará na Ópera. Mas se digo isto
sinto Wagner apertando-me os calcanhares e não posso permitir um agrilhoamento
tão fácil e gratuito. Wagner não foi nenhum deus. Quando muito uma besta, e,
mesmo assim, devagar.
Como viemos parar, novamente, a Wagner e
aos castelos e às verdades de papel e mentiras de realidade? Não sei. Não
interessa.
Nesta varanda deste cosmopolita quarto
de hotel, a noite é quente e sabe a sede de algo fresco com limão. Traz-me
whisky com ginger e pedras, Efraim, e algum limão. Esta noite, assim tão calma
e quente e seca é como uma antecâmara do que estará para vir quando a noite for
profunda e condenada à luz da manhã e das coisas mundiais. O vento levanta-se
com pequenos arrufos de um hálito que parece lavanda.
Lembro-me das altas montanhas italianas.
Gran Sasso e os seus tímidos lagos soprando como flautistas de Hamelin. A
música inebria, apaixona e faz viver. Tal como o Romantismo. Mas no Romantismo
tudo é silêncio e efusão. Ordem e Caos. Novidade e Tradição, ainda que tudo
pareça ser contra a velha tecedeira do tempo e dos costumes. O Silêncio
importa, acima de todas as coisas. Só o silêncio é capaz de nos revelar os
segredos mais íntimos da Natureza. O sentido das coisas.
Ser romântico é ser silencioso. Somos
românticos desde o momento em que entendemos a importância do silêncio.
Somos todos românticos, Efraim, quer o
aceitemos, quer o neguemos com todas as nossas forças. Não adianta. O
Romantismo é condição sine qua non de
qualquer existência, breve ou longa, preenchida ou vazia. E no final o silêncio
de um violino gemendo, enquanto Haroldo se perde pelas montanhas de uma Itália
que só existe nos olhos daqueles que sabem ver o outro lado das tempestades,
mesmo quando o nevoeiro é espesso. Mesmo quando as dúvidas nos esmagam com as
suas certezas.
Sim, meu butler, somos românticos. O
resto não interessa.
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