Meu querido José
Como diria Carlos Fradique Mendes, amigo de meu bisavô Marco António, onde está essa correspondência, seu maganão?
Há que tempos que espero por ler palavras suas! Então deixa a nossa tarde a meio? Deixa em suspenso as tílias e o Sol, positivamente luminoso, e os tons verdes de terra húmida, jovem frenético?
Parece-me que sofre de elefantíase literária, que é como quem diz: muitos projetos, muitas ideias, mas pouca realidade!
Envio-lhe mais esta impressão, mais Wagner, mais "Träume", mais Maria Adelaide. Ainda hei-de escrever qualquer coisa mais a propósito deste belo poema sinfónico, mas não hoje, mas não por agora. Wagner inquieta-me bastante.
Espero por si, ainda esta noite, no número (...) da continental Rua do Brasil.
Até breve.
Seu
Gonçalo V. de S.
"Ainda «Träume»"
Volto-me
para a janela que dá para o terraço deste grande hotel cosmopolita. Os sons
europeus, diria o engenheiro naval, inundam o ar da minha imaginação. De noite,
nenhum som é europeu. De noite, todos os sons são um silêncio líquido que se
despenha em sonhos. Sim, novamente "Träume". Novamente Wagner,
Efraim. Novamente essa besta de Sublime Transcendência!
Sento-me
no terraço deste grande hotel em Nicosia. Em que hei-de pensar? A noite chegou
assim que o silêncio abriu a porta do meu quarto com um toque suave na maçaneta
que foi forjada com as esperanças que um dia colhi num jardim ou num campo de
flores enquanto tu, Maria Adelaide, usavas uma fita no cabelo. Os teus lábios
eram tão sedosos e sumarentos que não me impressionaria se os encontrasse
descritos numas vinte páginas de um romance de Oitocentos…
Em
que hei-de pensar, Efraim?
O
copo de whisky novamente cheio de uma sede que não é minha. O copo repleto de
uma sede de séculos de busca de um sentido para o tempo que passa impassível,
inexorável, inevitável. Mas nada disto interessa. Interessa, sim, Maria
Adelaide, essa menina de fita no cabelo, de cesto entre as mãos colhendo lírios
e rosas e todas as flores do mundo. Colhendo todas as flores do mundo…
Mas
esta sede que eu tenho, tão antiga, Efraim. Dá-me de beber, enche-me o copo de
vida ou de vontade. Enche-me o copo de uma vontade líquida e luminosa.
Eu
a olhá-la de longe como um peregrino que avista o oráculo pela primeira vez. O
sol era a certeza de que tudo o resto era sombra, e ela, bela, simples,
definitiva, colhendo aquelas flores de tons tão impressionistas e tão reais.
Onde
estás, Maria Adelaide?
Efraim,
em que hei-de pensar?
Coloca
o "Träume" que Wagner musicou. É nesse espaço que me recolho como um
monge crúzeo após um dia de pregação pelos campos do Mondego, talvez numa
Coimbra de um século XIII da minha imaginação ou da minha loucura. Talvez de
uma Coimbra de amores perdidos em sangue. Talvez.
Vem,
Maria Adelaide, vem "Träume", inunda-me de uma paz mundial, de um
sossego capaz de tornar os tons do céu e da noite mais justos. Talvez paz.
Vem,
tu que dominas sobre as indómitas ondas do mar cinzento, vem e afaga-me a alma
com uma carícia por dentro. Vem e consola-me deste pensar sonhando acordado.
Vem, solene, divina, perfeita, indefinida. Vem.
Sem comentários:
Enviar um comentário