quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações





Meu querido José

Escrevo-lhe a horas quase tardias, de frio, nevoeiro e chuva, horas de um Outono que parece calma, plácido, quase bucólico. A luz do seu quarto é uma constante. 
Espero, ainda, jovem demónio porque demora tanto a enviar-me os textos que relatam a nossa tarde, Primeira, entre as tílias do Botânico! Envie-me isso, por amor de Atena! 
Entretanto, segue mais uma impressão, talvez sem nexo, e sem desejo dele, diria Bernardo Soares, sobre a vida, o mundo, as pessoas, o tempo, sei lá, meu caro, sobre a realidade que é a maior ficção contada em tiras de vento e silêncio.
Bom, aguardo novas da sua parte, jovem positivamente enérgico e romântico!
Muito Seu.

Gonçalo V. de S.


“Demónios Interiores”

O sol de Nicosia é um sol que não encontro em parte alguma do mundo. A não ser no Cairo, ou talvez na Sicília, ou até mesmo nas encostas de Parma naquelas tardes de queijo e olivas que se derretem na boca que perscruta os passos enervados de uma cartuxa. Stendhal? Talvez com calma, com muita calma.
Mas por que falo eu do Sol da Europa, esquecendo o Sol, real, absolutamente certo e luminoso dos trópicos e do Equador, o Sol brasileiro dos morros verdes e cinzentos de gente, do Sol malaio que desce as encostas de azul, líquidas e douradas como um papagaio que só existe nos livros de literatura infantil e na cabeça dos génios-doidos que inventam mundos com vidas e pessoas e angústias e coisas sérias de gente séria?
Mas na minha aldeia as ovelhas brincam como nuvens pelas encostas e as coisas sérias parecem ser as colheitas e as ceifas e o pão, de milho, sempre quente, à porta das portas velhas das senhoras que me chamavam menino com palavras enrugadas pelo Sol, por esse mesmo Sol que agora pareço querer esquecer por entre o luar de Nicosia, o whisky e as palavras de vento, cretinas e cabotinas, criando efeitos exquis em senhoras de leque que imagino a meu lado, piscando-me o olho, numa coquetterie duvidosa, digna da alcova de um psicólogo desses Paris que surgem como epítome de todo o Romantismo. E o que é todo o Romantismo senão lama caída nos paletós de uns quantos sujeitos que, não sendo napoleónicos, sonharam, qual engenheiro naval, como nenhum Napoleão sonhou, ainda que tudo fosse uma grande, inevitável e Romântica ilusão.
Tudo é ilusão, Efraim, e o Romantismo, devagar, desvanece dos corpos cansados, da pele que cola aos lábios amantes com toques de jasmim e avelã e nozes e um Sol, indubitavelmente mundial, brilhando em tons de mel.
O Sol de Nicosia é um Sol que não encontro em parte alguma do mundo. Talvez noutras terras o haja outros Sol e outras vidas com sentimentos e coisas profundas e intensas dentro, como a humidade que entra pelas casas adentro em noites de chuva e trovoada.
Mas hoje o Sol. Na minha aldeia, as romarias. Em Nicosia, os veraneantes. Na minha aldeia, a procissão da santinha, o padre embutido numa silenciosa estola. Os miúdos rezando terços de feijão frade, ainda que o feijão não tenha culpa do nome. E a fumaça das locomotivas que rugiam pelo rio acima, trazendo o Progresso ou promessas dele, e da Modernidade que parecia entreabrir os lameiros, luzeiros de água paúlica.
Mas, mas e mas. Que impressão a minha de tantas adversativas num pensamento tão ténue e tão viajado por demónios interiores.
Efraim, traz o meu panamá. Vamos ver o mar.
Vamos ver o Sol.








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