Caro
José,
Escrevo-lhe
a estas horas tardias, mornas e líricas, por saber que lerá estas palavras
ainda hoje. O estafeta sabe a luz que vem do seu quarto. Noites de estudo,
certo? Estude muito, o máximo que possa, com certeza que voará sem medo, lá nas
alturas celestes das belezas inexplicáveis. É tarde, e gostaria que publicasse
isto aquando do sono de muitos, para que este texto passe breve, ligeiro e
anónimo, pois é assim que tudo deve ser visto. Tudo, claro está, aquilo que
está nas impressões e na pessoa que as escreve.
Dê-me
novidades suas! Que é feito dos seus (…) para quando o fim dos textos em que
escreve a tarde em que nos conhecemos? Envie-me para a próxima semana algo para
ler. Cheguei esta manhã de Veneza e ainda não dormi nada. Sinto-me num sonho,
meu querido amigo. Volto à pacatez de Coimbra, da nossa Coimbra, e sinto-me
como um perdido, incerto não nas escolhas que devo fazer, antes nas certezas já
aceites por todos. Fumo um charuto como há muitos anos atrás e penso.
Outras
conversas, que agora não interessam. (…)
Apareça
cá por casa quando quiser, sabe onde moro. Efraim manda um apertado abraço.
Outro meu.
Do
seu
Gonçalo
V. de S.
“Noites de Outono”
Chego a este quarto de hotel, em
Nicosia, a tantos de Agosto de 1986. É de madrugada e o Oriente entra por esta
varanda com toques de seda e de cetim fino. No ar paira um aroma quente,
exótico. Efraim arruma as malas e os acessórios. A garrafa de Whisky, velhaco!,
e um copo!, e gelo! E vem tu também beber desta noite!, peço ao formidável judeu
em tom amigável e que carrega anos e anos de confidência.
Que me espera, para lá desta noite e das
estrelas que existem depois do nosso olhar sobre elas? Um suave vento sopra do
Sul, do Sul onde existem caravanas imaginárias, onde os dromedários tropeçam em
séculos de areia e civilizações que passam, como uma chuva.
Este país é um navio.
Este país é um navio.
Este país é um navio.
Necessário é escrever durante esta
temporada neste país mitológico. Talvez só viva de noite todas estas experiências
de vento e calor e estrelas num céu manso e ondulado, que nos chega através do
sussurro dos búzios que ficaram lá, longe, na costa.
O vento a soprar, as palmeiras agitam-se
num frufru botânico exuberante. Negras e líquidas colunas de folhas respigam
num sussurro diletante.
Este país é um navio.
Este país é um navio.
Este país é um navio.
Talvez uma noite de sono fosse o ideal
para a alma. Mas que é feito da alma a estas horas da madrugada? Traz o whisky,
Efraim!
Tenho impressões estranhas, que me
parecem surgir entre o estar adormecendo e o estar sonhando. Uma forma de
desdormir bastante soaresiana. Hoje tudo é viagem. Portos, aeroportos,
estações, terminais, gares, tudo isso são os pontos de encontro deste final de
século. Encontramo-nos todos no ponto de viagem, sempre entre esquinas de
perguntas casuais e carregadíssimas de uma hipocrisia social maneirista. O
estável de hoje é o movimento e a incerteza. Ah! Como é bom ser incerto, não
ter certezas de nada ou de sistemas e Ideias!
Deito-me não cansado, mas farto de uma
supercivilização. Lembro-me de Jacinto e rio-me como um Cristo milagreiro! Ah!
Leituras imbecis de um falso regresso à pureza ufana das serras.
Traz o raio do whisky, Efraim, seu
velhaco! Efraim demora, não sei se propositadamente ou se por conta das fotos
que trago, sempre, comigo, como companhias feitas de sépia e de tempo. A
vontade que tenho, por vezes, de um pouco de passado e de uma vaga
possibilidade de te conhecer, Maria Adelaide.
Tenho a certeza da certeza do amor, nos
teus lábios quase diáfanos, quase.
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