De Nicosia para o mundo, surge mais esta impressão de Gonçalo Viana de Sousa.
"Dias nocturnos"
Desço a escadaria do hotel num trote
fácil, pautado e travadinho. É de manhã e o sol , entre tantas coisas, é cinzento e surge por detrás de uma cansada neblina.
Assobio para dentro uma ária qualquer,
não sei se de Mozart ou Donizetti. Não interessa. Na recepção do hotel: o maître
d’hôtel e uns quantos funcionários de farda.
Saio pela porta principal como quem se
esquece da vida. Num passo assertivo, frontal, vertical. A manhã surge depois
da porta e dos pensamentos. Na rua, uns quantos passeantes, flâneurs, touristes, que, como eu, observam e absorvem a neblina, a manhã e o
cheiro a pão quente fresco, acabado de sair de um forno que só existe nas
sensações.
Toda a manhã, todas as manhãs são, em
Nicosia, sensações distorcidas, longínquas, distantes, que não traduzem o mundo
real dos ocupados afazeres do quotidiano.
A dulceza da banalidade e dos pormenores
são deixados de lado, sozinhos, divagando pela ordem natural das coisas: o ser
ordinário, entediante, desinteressante.
Efraim, no quarto do hotel: o rigor, a
destreza e a competência de um Smith semita. Pudesse eu, como meu bisavô, ter
conhecido Carlos Fradique Mendes!
Mas o tempo passa e o silêncio olímpico
das coisas primeiras é ensurdecedor. A manhã em Nicosia: flores frescas regadas
pelo orvalho nocturno, o pão quente, o barulho das tendas de fruta e das
barracas do peixe e de crustáceos. Fortes homens de fartos braços carregam
sacos e cestas com legumes e galinhas e especiarias. E o ar de Nicosia é um
porto aberto à Europa e ao Oriente que só existe na cabeça de alguns Álvaros de
Campos. As cores da canela, do caril, da noz-moscada, do cravinho, das pimentas
e dos alperces e damascos é uma folie de
can can!
O verde acastanhado é amarelo fresco,
duma cor que tenho a certeza de ser um vermelho que se esconde num laranja
negro de branco, líquido, seco e sedoso. Pós de todas as cores e de todos os
portos, com gente dentro, do mundo.
Dez dias depois, sim, dez dias depois,
saio do meu quarto de hotel e vejo pela primeira vez Nicosia. Isto se for
possível falar em ver as coisas com este nevoeiro estranho e quase sebástico.
A manhã, em Nicosia, são as minhas
impressões escritas depois, no meu quarto de hotel, durante noites mais
ensolaradas que as manhãs de Agosto nesta capital mitológica de um país navio.
A realidade é a minha impressão, um post-script onde não interessam as
formas, mas sim aquilo que a realidade de uma caneta não consegue apreender.
Efraim, que foi que fizemos dos dias,
das noites que passamos, passei, neste quarto, como quem passa uma vida inteira
sozinho?
Efraim não me responde, enche-me o copo
de uma sede seca, sólida, lamacenta.
As manhãs em Nicosia são as minhas
impressões nocturnas. Vivo o presente sempre depois. O dia tem duas noites e a
verdade tem destas coisas.
"Vivo o presente sempre depois". Só esta frase já vale a leitura. Já vale o dia!!!
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