A meu pedido, José, Gonçalo revela hoje mais uma impressão do seu impublicável Cadernos de Nicosia.
Quanto aos episódios que relatam o dia em que conheci Gonçalo teremos tempo. O que interessa, pois, é dar voz ao nosso flâneur.
Cantar de Grilo
Sim,
ao longe, perto do luar e da montanha azul e profunda, a noite canta em
folguedos de guitarras e de pandeiretas. As fogueiras crepitam alto, o fumo do
pinho estala nos ouvidos e nas canecas de barro que mergulham no verde e
atracam na broa de milho.
Um
grilo canta e silva pela encosta da ermida do santinho. As velhas juntam-se nas
noites de verão no largo do pelouro, e o granito é a tácita testemunha de
gerações de alcoviteiras e vidas miúdas. O forno nunca arrefece a não ser nos
invernos mais rigorosos. A bica nunca cessa o seu rumorejar fresco de água pura
adormecendo nas bacias ou nos tanques lavadouros. Figos sumarentos e sedosos
são colhidos em noites de festa, enquanto as raparigas namoradeiras pensam em
futuros de oiro e nos enxovais como promessa de uma vida nova. A noite canta
folguedos e a minha imaginação fica presa nessas aldeias de outros tempos como
um síndrome de algo proustofilicamente perdido. E pasmo, assim, como quem
deseja perdurar em palavras apenas lidas pelo esquecimento.
Efraim,
o desejo de humanidade em cada cantar de melro, em cada gorjeio de água é tão
doloroso quanto delicado.
Deste
quarto de hotel, o mundo não é mundo. É apenas uma janela com vista para
Nicosia. E ainda há pouco divagava por aldeias caiadas de lareiras que,
mornamente, crepitavam família e segurança…
Façamos
as malas, Efraim! Partimos ainda esta noite, no primeiro navio que estiver
disponível! Nicosia começa a enfastiar-me de tanto sol e de tanta lua e de
tantas promessas de um mar azul e acolhedor. Deita fora todas as fotografias.
Queimas as de Maria Adelaide. Faz com que as imagens dessa mulher impossível e
imaginária desapareçam da realidade e da ficção, já que os seus cabelos são
descrições de romances realistas escritos lá longe, na França de Oitocentos.
Livra-te
somente das fotos, meu amigo. Fiquemos mais uns dias, até semanas. Nicosia
ainda tem o mundo para nos oferecer. Para onde iríamos a esta hora da noite,
quando podemos escutar este suave cantar de grilo?
Sentemo-nos
e escutemos esse pequeno cantar de grilo, leve, suave, breve.
Todas
as belezas são efémeras. O tempo corrói o caruncho dos ouvidos das casas e dos
palácios, carcomendo as perucas, tanto sociais como humanas.
Nem
whisky ou música conseguem, hoje, nesta noite de Agosto (ou Setembro?) acolher
o tremer inseguro que sinto nas minhas mãos. Que fizemos da vida Efraim?
Que
fiz eu dos meus propósitos de lírios e amores? Maria Adelaide, volta, vem para
mim, mais uma vez, só mais uma vez. Vem, meu amor rebuçado de linho. Meu amor
doce e riquinho. Vem, Maria Adelaide, minha nossa senhora das coisas possíveis
que procuramos, nunca em vão. Sempre em vão.
Sei
que Efraim não queimou as fotografias. Ele sabe a importância de todos aqueles
rostos, inscritos a sépia e a esquecimento.
E
tudo isto por causa de uma noite de aldeia em festa!
Volta
para a cama, Viana de Sousa, diz-me Efraim. Volta para cama e esquece-te da
noite.
Eu
volto para a cama e fecho os olhos.
A
realidade não existe.
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