sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - o Flâneur das sensações



A meu pedido, José, Gonçalo revela hoje mais uma impressão do seu impublicável Cadernos de Nicosia.
Quanto aos episódios que relatam o dia em que conheci Gonçalo teremos tempo. O que interessa, pois, é dar voz ao nosso flâneur.

Cantar de Grilo

            Sim, ao longe, perto do luar e da montanha azul e profunda, a noite canta em folguedos de guitarras e de pandeiretas. As fogueiras crepitam alto, o fumo do pinho estala nos ouvidos e nas canecas de barro que mergulham no verde e atracam na broa de milho.
            Um grilo canta e silva pela encosta da ermida do santinho. As velhas juntam-se nas noites de verão no largo do pelouro, e o granito é a tácita testemunha de gerações de alcoviteiras e vidas miúdas. O forno nunca arrefece a não ser nos invernos mais rigorosos. A bica nunca cessa o seu rumorejar fresco de água pura adormecendo nas bacias ou nos tanques lavadouros. Figos sumarentos e sedosos são colhidos em noites de festa, enquanto as raparigas namoradeiras pensam em futuros de oiro e nos enxovais como promessa de uma vida nova. A noite canta folguedos e a minha imaginação fica presa nessas aldeias de outros tempos como um síndrome de algo proustofilicamente perdido. E pasmo, assim, como quem deseja perdurar em palavras apenas lidas pelo esquecimento.
            Efraim, o desejo de humanidade em cada cantar de melro, em cada gorjeio de água é tão doloroso quanto delicado.
            Deste quarto de hotel, o mundo não é mundo. É apenas uma janela com vista para Nicosia. E ainda há pouco divagava por aldeias caiadas de lareiras que, mornamente, crepitavam família e segurança…
            Façamos as malas, Efraim! Partimos ainda esta noite, no primeiro navio que estiver disponível! Nicosia começa a enfastiar-me de tanto sol e de tanta lua e de tantas promessas de um mar azul e acolhedor. Deita fora todas as fotografias. Queimas as de Maria Adelaide. Faz com que as imagens dessa mulher impossível e imaginária desapareçam da realidade e da ficção, já que os seus cabelos são descrições de romances realistas escritos lá longe, na França de Oitocentos.
            Livra-te somente das fotos, meu amigo. Fiquemos mais uns dias, até semanas. Nicosia ainda tem o mundo para nos oferecer. Para onde iríamos a esta hora da noite, quando podemos escutar este suave cantar de grilo?
            Sentemo-nos e escutemos esse pequeno cantar de grilo, leve, suave, breve.
            Todas as belezas são efémeras. O tempo corrói o caruncho dos ouvidos das casas e dos palácios, carcomendo as perucas, tanto sociais como humanas.
            Nem whisky ou música conseguem, hoje, nesta noite de Agosto (ou Setembro?) acolher o tremer inseguro que sinto nas minhas mãos. Que fizemos da vida Efraim?
            Que fiz eu dos meus propósitos de lírios e amores? Maria Adelaide, volta, vem para mim, mais uma vez, só mais uma vez. Vem, meu amor rebuçado de linho. Meu amor doce e riquinho. Vem, Maria Adelaide, minha nossa senhora das coisas possíveis que procuramos, nunca em vão. Sempre em vão.
            Sei que Efraim não queimou as fotografias. Ele sabe a importância de todos aqueles rostos, inscritos a sépia e a esquecimento.
            E tudo isto por causa de uma noite de aldeia em festa!
            Volta para a cama, Viana de Sousa, diz-me Efraim. Volta para cama e esquece-te da noite.
            Eu volto para a cama e fecho os olhos.

            A realidade não existe.

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