quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Como conheci Gonçalo - parte III

Meu Querido José

Muito folgo em ler as suas páginas, últimas, contando o episódio no qual se deu, na alameda ou avenida das tílias, em 2010, o nosso inusitado encontro. Tirando uma parte ou outra, em que se perde pelos enlevos românticos (ainda!) de descrições quase panteístas, sinto uma grande alegria e frescura ao ler as suas páginas, ainda que as descreva como paraliterárias. Chamemos-lhes, antes, pararreais, pois a forma como falou e introduziu Richard Wagner nestas folhas de odor diáfano fazem-me ser um mito ou uma espécie de figura quase mágica. Olhe que não mereço tais comparações, mas fiquei enternecido com a forma como fez esse compasso entre o ritmo do texto e dessa maravilhosa composição amorosa de Wagner, que traduzida para a nossa lusa língua, língua de sistemas!, significa Sonho. Não me coloque num patamar pararreal! Sou de carne e de tempo, nada mais…
Continue, meu querido, continue, amigo. Não pare agora que começa a entrar naquilo que verdadeiramente interessa: a capacidade de tornar a realidade num pedaço, ainda que esquecido, de ficção. Mantenha esse seu amor, esse seu gosto, essa sua sensibilidade. Não a desperdice comigo. Ofereçe-a aos leitores! Escreva! Escreva! Escreva! Sinto-me frenético e pastoril, hoje, por causa do seu texto. Efraim também leu as suas folhas e gostou bastante. Um shake-hands deste inolvidável judeu. Cumprimentos aos leitores e, por amor dos deuses e das coisas belas, coloque a breve composição, poema sinfónico, diria, de Wagner, a acompanhar o seu texto. Pergunto-lhe: porque é que só tem, como me disse, publicado duas a três páginas por semana? Publique mais. Olhe que, com certeza, há quem, avidamente e qual peregrino, leia essas suas páginas como um oráculo de Delphoi.
  Quanto a mim, regressei há três dias de Malta, tendo indo cumprir uma velha promessa de visitar um abade amigo da família, centenário e cheio de vigor! Devem ser aqueles ares marítimos e romanticamente orientais de um Oriente a Oriente do Oriente que conhecemos. Leia Baudelaire, leia Chateaubriand. Leia, ame, beba, viaje.
Muito seu.

Gonçalo V. de Sousa.

 Segue o link da composição sinfónica de Wagner - https://www.youtube.com/watch?v=NAirnyx-XPA

                O tempo parecia não existir.
            A língua é capaz de traduzir mundos e sistemas, filosofias e toda uma Escola ou Movimento. O francês, meu jovem, dizia-me o senhor Viana de Sousa, é a língua mais complexa e completa por ter em si toda uma galáxia de tempos verbais e terminações tremendas, filhas de um latim tardio de igrejas e mosteiros queimados. No francês, encontramos toda a beleza de sistemas económicos, políticos e sociais. Através do francês, desvendamos novos mundos literários de floresta e rios caudalosos, tal como o português. A diferença é que o português é uma tradução, em calão, disse o Eça, do francês. Melhor dizendo, era, visto que hoje em dia tudo é traduzido do inglês e tudo é feito pensando na língua que sua majestade jamais falaria se não fosse um plebeu de origens míticas chamado William Shakespeare.
            Bem, meu caro jovem, a língua e a linguagem refletem a ideia de um povo, da sua cultura e da sua história, no sentido em que é capaz de ser um fiel espelho do pensamento humano, artístico e até divino. Repare que até o Cristianismo assenta na complexidade de umas quantas línguas com labirintos verbais. Em suma, a complexidade de uma língua é a fonte da sua riqueza e futuro.
            Enquanto dizia isto, Gonçalo olhava-me nos olhos, ao mesmo tempo que brincava com o seu Porkpie, fazendo este saltitar entre as mãos. Eu olhava para esta figura com deslumbramento. Ao mesmo tempo que apreendia o que era dito reformulava as minhas questões, confiante que também saberia responder, perguntando, na tonta esperança de sair vitorioso como um Siegfried que derruba o dragão. (Naquela altura eu não sabia quem era Siegfried, só mais tarde, após longas e saborosas conversas com Gonçalo é que vim a descobrir o maravilhoso mundo de Wagner. Sem ele, jamais seria possível elaborar esta comparação neste texto paraliterário de rudimentar engenho).
            Compreendo o que diz, senhor Viana de Sousa. Mas pense no seguinte: se houvesse uma língua capaz de descrever todos os sistemas e explicar o mundo e as suas filosofias através de uma linguagem mais simples e sintetizada, não seria isso o ideal? A meu ver, penso que o inglês consegue fazer isso, ao simplificar, por exemplo, os tempos verbais e as suas terminações. Além disso, o facto de ter um elemento neutro para qualificar o género, tal como o alemão, é genial, acredito. Gonçalo pasmou olhando para mim, sorriu, colocou a mão no meu ombro e respondeu quase de forma condescendente, e o jovem acredita que isso é capaz? Sintetizar todos os sistemas numa língua que perante um vous e um subjonctif  perder-se-ia como uma jovem nos braços de Pelléas? O inglês, por mais universal que pareça ser, jamais conseguirá absorver, como o francês, ou até mesmo o alemão, toda a grandiosidade de uma civilização. Mas voltemos a Fradique e ao meu bisavô, isto se ainda quiser saber a história de como eles ficaram grandes amigos, depois daquela quente tarde de Julho de 1871.
            Com certeza, senhor Viana de Sousa. Sabe que sempre tive a ideia que Fradique não existiu, que foi uma mera criação literária (à época também quereria dizer ontológica, mas as palavras faltavam-me, como ainda hoje, se bem que naquele tempo um pouco mais. Ah! Primaveras românticas!) de Eça de Queirós, Antero de Quental e Jaime Batalha Reis.
            Ao princípio, toda a gente pensou isso, meu jovem. Depois, quando Eça se apercebeu que a figura que ele descreveu em O mistério da estrada de Sintra com Ramalho Ortigão, em 1870, e na Revolução de Setembro, já não me recordo da data, existia de facto, e realmente habitava Paris e o mundo como um touriste, o nosso Eça não soube o que fazer. Até que Fradique convidou este, numa solarenga tarde de Novembro, para ir a sua casa, na Rua de Varennes, de forma a conhecerem-se melhor.
            A minha cabeça girava sobre todos os ângulos possíveis. Como é possível Eça de Queirós ter conhecido Carlos Fradique Mendes, se este nunca existiu verdadeiramente? Estarei eu a ser vítima de uma brincadeira de bom gosto?
            Resolvi, então, determinado, levantar esta suspeita a Gonçalo. Se Fradique existiu mesmo, como é que não há bilhete algum ou correspondência deste com Eça de Queirós ou com o seu avô? Bisavô, corrigiu Gonçalo. Sim, bisavô. Como explica isso?
            Então não acredita no que lhe estou a dizer? Sabe que, ao acreditar que Fradique não existiu para além das palavras e da escrita, está a por a em causa a minha própria existência, tendo em conta que, então, meu bisavô ou era um maluco ou, verdadeiramente, não existiu!
Depois desta afirmação quase ameaçadora, comecei a rir-me como uma criança. Então o senhor não existe, de facto! O senhor é fruto da minha imaginação. Diga-me, pois, como é possível ser verdade aquilo que me conta, sabendo que não existe qualquer troca de correspondência entre o seu bisavô e Fradique, ou entre este e Eça de Queirós. É absolutamente irreal aquilo que me está a dizer. (A certo ponto, senti-me solto e parecia nascer algo ou alguém diferente em mim, enquanto respondia a Gonçalo. Não me apercebi que magoara, talvez, os sentimentos de um homem requintado e de bom gosto, que jamais seria capaz de mentir, fosse pelo que fosse).
Gonçalo ficou ofendido, e os seus olhos pareciam rasgar os meus através daquele olhar furtivo e experiente, de quem sabe como ferir alguém profundamente, mas sem nunca ousar fazê-lo por ser educado de mais. Olhou para mim, como um bardo. O vento fazia com que as folhas dançassem ao som de uma valsa invisível. À época, se soubesse, diria que a Natureza era embalada pela Träume, de Wagner. Gonçalo continuava a olhar para mim, silencioso, parecendo esperar o final daquela maravilhosa composição wagneriana que não se ouvia, ou que pelo menos eu ainda não soubera escutar. Quando aquilo que eu agora afirmo ser o cessar dos violinos se deu, Gonçalo olhou-me como nunca ninguém me olhara e disse,

Então eu não existo! (continua)

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