Meu Querido José
Muito folgo em ler as suas
páginas, últimas, contando o episódio no qual se deu, na alameda ou avenida das
tílias, em 2010, o nosso inusitado encontro. Tirando uma parte ou outra, em que
se perde pelos enlevos românticos (ainda!) de descrições quase panteístas,
sinto uma grande alegria e frescura ao ler as suas páginas, ainda que as
descreva como paraliterárias. Chamemos-lhes, antes, pararreais, pois a forma
como falou e introduziu Richard Wagner nestas folhas de odor diáfano fazem-me
ser um mito ou uma espécie de figura quase mágica. Olhe que não mereço tais
comparações, mas fiquei enternecido com a forma como fez esse compasso entre o
ritmo do texto e dessa maravilhosa composição amorosa de Wagner, que traduzida
para a nossa lusa língua, língua de sistemas!, significa Sonho. Não me coloque
num patamar pararreal! Sou de carne e de tempo, nada mais…
Continue, meu querido, continue,
amigo. Não pare agora que começa a entrar naquilo que verdadeiramente
interessa: a capacidade de tornar a realidade num pedaço, ainda que esquecido,
de ficção. Mantenha esse seu amor, esse seu gosto, essa sua sensibilidade. Não
a desperdice comigo. Ofereçe-a aos leitores! Escreva! Escreva! Escreva!
Sinto-me frenético e pastoril, hoje, por causa do seu texto. Efraim também leu
as suas folhas e gostou bastante. Um shake-hands
deste inolvidável judeu. Cumprimentos aos leitores e, por amor dos deuses e das
coisas belas, coloque a breve composição, poema sinfónico, diria, de Wagner, a
acompanhar o seu texto. Pergunto-lhe: porque é que só tem, como me disse,
publicado duas a três páginas por semana? Publique mais. Olhe que, com certeza,
há quem, avidamente e qual peregrino, leia essas suas páginas como um oráculo
de Delphoi.
Quanto a mim, regressei há três dias de Malta, tendo indo cumprir
uma velha promessa de visitar um abade amigo da família, centenário e cheio de
vigor! Devem ser aqueles ares marítimos e romanticamente orientais de um
Oriente a Oriente do Oriente que conhecemos. Leia Baudelaire, leia
Chateaubriand. Leia, ame, beba, viaje.
Muito seu.
Gonçalo
V. de Sousa.
O
tempo parecia não existir.
A
língua é capaz de traduzir mundos e sistemas, filosofias e toda uma Escola ou
Movimento. O francês, meu jovem, dizia-me o senhor Viana de Sousa, é a língua
mais complexa e completa por ter em si toda uma galáxia de tempos verbais e
terminações tremendas, filhas de um latim tardio de igrejas e mosteiros
queimados. No francês, encontramos toda a beleza de sistemas económicos,
políticos e sociais. Através do francês, desvendamos novos mundos literários de
floresta e rios caudalosos, tal como o português. A diferença é que o português
é uma tradução, em calão, disse o Eça, do francês. Melhor dizendo, era, visto
que hoje em dia tudo é traduzido do inglês e tudo é feito pensando na língua
que sua majestade jamais falaria se não fosse um plebeu de origens míticas
chamado William Shakespeare.
Bem,
meu caro jovem, a língua e a linguagem refletem a ideia de um povo, da sua
cultura e da sua história, no sentido em que é capaz de ser um fiel espelho do
pensamento humano, artístico e até divino. Repare que até o Cristianismo
assenta na complexidade de umas quantas línguas com labirintos verbais. Em
suma, a complexidade de uma língua é a fonte da sua riqueza e futuro.
Enquanto
dizia isto, Gonçalo olhava-me nos olhos, ao mesmo tempo que brincava com o seu Porkpie, fazendo este saltitar entre as
mãos. Eu olhava para esta figura com deslumbramento. Ao mesmo tempo que
apreendia o que era dito reformulava as minhas questões, confiante que também
saberia responder, perguntando, na tonta esperança de sair vitorioso como um Siegfried
que derruba o dragão. (Naquela altura eu não sabia quem era Siegfried, só mais
tarde, após longas e saborosas conversas com Gonçalo é que vim a descobrir o
maravilhoso mundo de Wagner. Sem ele, jamais seria possível elaborar esta
comparação neste texto paraliterário de rudimentar engenho).
Compreendo
o que diz, senhor Viana de Sousa. Mas pense no seguinte: se houvesse uma língua
capaz de descrever todos os sistemas e explicar o mundo e as suas filosofias
através de uma linguagem mais simples e sintetizada, não seria isso o ideal? A
meu ver, penso que o inglês consegue fazer isso, ao simplificar, por exemplo,
os tempos verbais e as suas terminações. Além disso, o facto de ter um elemento
neutro para qualificar o género, tal como o alemão, é genial, acredito. Gonçalo
pasmou olhando para mim, sorriu, colocou a mão no meu ombro e respondeu quase
de forma condescendente, e o jovem acredita que isso é capaz? Sintetizar todos
os sistemas numa língua que perante um vous
e um subjonctif perder-se-ia como uma jovem nos braços de Pelléas? O inglês, por mais universal
que pareça ser, jamais conseguirá absorver, como o francês, ou até mesmo o
alemão, toda a grandiosidade de uma civilização. Mas voltemos a Fradique e ao
meu bisavô, isto se ainda quiser saber a história de como eles ficaram grandes
amigos, depois daquela quente tarde de Julho de 1871.
Com
certeza, senhor Viana de Sousa. Sabe que sempre tive a ideia que Fradique não
existiu, que foi uma mera criação literária (à época também quereria dizer
ontológica, mas as palavras faltavam-me, como ainda hoje, se bem que naquele
tempo um pouco mais. Ah! Primaveras românticas!) de Eça de Queirós, Antero de
Quental e Jaime Batalha Reis.
Ao
princípio, toda a gente pensou isso, meu jovem. Depois, quando Eça se apercebeu
que a figura que ele descreveu em O
mistério da estrada de Sintra com Ramalho Ortigão, em 1870, e na Revolução de Setembro, já não me recordo
da data, existia de facto, e realmente habitava Paris e o mundo como um touriste, o nosso Eça não soube o que
fazer. Até que Fradique convidou este, numa solarenga tarde de Novembro, para
ir a sua casa, na Rua de Varennes, de forma a conhecerem-se melhor.
A
minha cabeça girava sobre todos os ângulos possíveis. Como é possível Eça de
Queirós ter conhecido Carlos Fradique Mendes, se este nunca existiu
verdadeiramente? Estarei eu a ser vítima de uma brincadeira de bom gosto?
Resolvi,
então, determinado, levantar esta suspeita a Gonçalo. Se Fradique existiu
mesmo, como é que não há bilhete algum ou correspondência deste com Eça de
Queirós ou com o seu avô? Bisavô, corrigiu Gonçalo. Sim, bisavô. Como explica
isso?
Então
não acredita no que lhe estou a dizer? Sabe que, ao acreditar que Fradique não
existiu para além das palavras e da escrita, está a por a em causa a minha
própria existência, tendo em conta que, então, meu bisavô ou era um maluco ou,
verdadeiramente, não existiu!
Depois desta afirmação quase ameaçadora,
comecei a rir-me como uma criança. Então o senhor não existe, de facto! O
senhor é fruto da minha imaginação. Diga-me, pois, como é possível ser verdade
aquilo que me conta, sabendo que não existe qualquer troca de correspondência
entre o seu bisavô e Fradique, ou entre este e Eça de Queirós. É absolutamente
irreal aquilo que me está a dizer. (A certo ponto, senti-me solto e parecia
nascer algo ou alguém diferente em mim, enquanto respondia a Gonçalo. Não me
apercebi que magoara, talvez, os sentimentos de um homem requintado e de bom
gosto, que jamais seria capaz de mentir, fosse pelo que fosse).
Gonçalo ficou ofendido, e os seus olhos
pareciam rasgar os meus através daquele olhar furtivo e experiente, de quem
sabe como ferir alguém profundamente, mas sem nunca ousar fazê-lo por ser
educado de mais. Olhou para mim, como um bardo. O vento fazia com que as folhas
dançassem ao som de uma valsa invisível. À época, se soubesse, diria que a
Natureza era embalada pela Träume, de
Wagner. Gonçalo continuava a olhar para mim, silencioso, parecendo esperar o
final daquela maravilhosa composição wagneriana que não se ouvia, ou que pelo
menos eu ainda não soubera escutar. Quando aquilo que eu agora afirmo ser o
cessar dos violinos se deu, Gonçalo olhou-me como nunca ninguém me olhara e
disse,
Então eu não existo! (continua)
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