Meu querido José,
Peço-lhe mil e imensas desculpas por este longo período de silêncio durante os tempos de estio interior que foram os meses de Julho e Agosto.
Viajei, dancei, li e conheci. Só isto lhe posso dizer por agora, nesta carta escrita a traços largos de um esboço impressionista.
Não me posso demorar, pois tenho um jantar daqui a momentos e não gosto de chegar atrasado, pois, sabe bem que para mim a pontualidade é o estigma de um carácter.
Deixo-lhe um breve devaneio do impublicável Cadernos de Nicosia.
Dê notícias! Apareça para conversarmos.
Aos leitores, um abraço largo e estético.
Muito seu.
Gonçalo V. de S.
"Devaneios"
Ao som da silenciosa e estridente lua de
Agosto, acredito que todos os motivos são válidos. Era uma tarde de Sol, como
tantas outras. A cidade brilhava implacável, linda, cinzenta e líquida. A
rapariga de cabelos loiros perseguia-me a cada noite, a cada olhar, em cada
pensamento.
Havia visto tal figura numa manhã de
Abril, florida e fresca, jovem e pululante de perfumes e odores.
Nunca soube o nome dela. Tentei
encontrá-la por todos os cantos e ruas e lojas da cidade, mas sempre em vão. Só
o acaso me levara a encontrá-la naquela manhã de Abril que foi uma manhã que
jamais esquecerei. Ela era bela e imponente! Uma deusa grega, marmórea, com um
sorriso brando adormecido nuns lábios de cetim vermelho. O seu olhar,
energicamente lânguido, penetrava mesmo até nos recantos mais íntimos da alma
dos grandes homens. Amei-a desde essa manhã, desde aquele olhar primeiro e
fundacional. Estava sentado numa mesa à janela da pâtisserie do costume. Ela
passou a correr, com os longos e loiros cabelos de trigo soltos ao vento que
era uma carícia na sua face profanamente imaculada. Segui-a com o olhar até ao
final da rua, sabendo que uma mulher daquelas se segue até ao fim da vida.
Fiz logo um pequeno esboço de tal bela
mulher, num dos guardanapos do estabelecimento. Guardei-o no bolso interior do
casaco como quem esconde um tesouro num cofre. No final dessa manhã, saí da
pâtisserie e continuei a minha vida, inevitavelmente insignificante. O chapéu e
a gabardina, o guarda-chuva e a pasta a serem os companheiros de sempre.
Ela era agora toda a minha realidade
líquida e absoluta. Como Wagner em noites de insónia e de Deus.
Efraim, nunca mais voltei a ver cabelos
tão loiros e tão maravilhosos. Lábios sedosos e sumarentos nem nos romances de
oitocentos era capaz de os encontrar, quanto mais no palavreado Modernista.
Nessa noite, de Abril, a lua era um
bronze alto e o silêncio era olímpico. Não sei porque é que me lembrei disto
agora, Efraim, mas aquela mulher dava certezas para o resto da vida, só de
olhá-la. O tempo passou. Dias, meses, anos. Os cabelos cansados e os olhos meio
gastos. Hoje apercebo-me que tal criatura foi fruto da minha imaginação.
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