quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Como conheci Gonçalo - Parte II


Meu caro José,
Esta semana deixemos os Cadernos de Nicosia, impublicáveis, e da vida resguardados no silêncio da inexistência, dos testemunhos.
Sei que iniciou uma empresa só sua, agora. A de relatar, numas quantas páginas a inesquecível tarde da alameda das tílias.
Sucesso, é o que lhe desejo! Sabendo de antemão que, sem dúvida alguma, terá sucesso, não pelo facto de me revelar aos poucos, mas sim pela noção que tem do papel da escrita. Peço-lhe que não seja demasiado imaginativo. Deixe a realidade e a memória fazerem o seu trabalho. Olhe que na memória e no tempo há ficção suficiente para repovoar a terra com seres de papel.
Aguardo, pois, as suas páginas, essas sim, publicáveis ao longo da penosa e reconfortante demanda que é a escrita.
Seu.

Gonçalo V. de Sousa.

Depois de algumas conversas com Gonçalo Viana de Sousa, o nosso flâneur, este decidiu que esta semana ficaria eu, pobre rapaz de terras do Douro e do Tâmega, onde começa o Marão, responsável pela publicação de mais um episódio do dia em que conheci um homem singular e que, para sempre, mudou a minha vida.
No vosso regaço, e com o pedido da vossa tolerância e benevolência literária, estendo este segundo episódio daquela tarde.




Fiquei estarrecido com aquela afirmação. Dentro da minha cabeça nasciam abundantemente mil e uma dúvidas e perguntas que gostaria de fazer, mas como jovem intrépido que era, coitado de mim, ainda com ideias de Revolução naquela altura!, perguntei, melhor, rugi, o seu avô conheceu Carlos Fradique Mendes, como assim?
Ah, misérias das primeiras primaveras que nos levam ao precipício das perguntas sem antes nos recolhermos ao altar da reflexão!
É verdade, foi num verão de 1871, pelo Cairo, que o meu avô Marco António Viana de Sousa conheceu tal personagem, numa viagem de paquete pelo Nilo. Meu bisavô fora ao Egipto para ver a maravilha que fora a abertura do canal do Suez, inaugurado dois anos antes, em 1869. Como era senhor de muitas terras de semeadura pelo Alentejo e pelas terras de Celorico e Mondim de Basto, Marco António Viana de Sousa resolveu ser acionista da Companhia Portuguesa e Comércio no Delta do Nilo e da Assíria. Deste modo, teria mais ligações com Lisboa e com os cais de embarque da Europa e de toda a costa mediterrânica. Meu bisavô travou conhecimento com Fradique Mendes por um mero acaso. Gonçalo, apesar de eu ainda não saber o seu nome, olhou para as tílias com um olhar que era capaz de descobrir os segredos mais íntimos, e suspirou, talvez as melhores coisas da vida aconteçam por acaso…
  Meu bisavô dizia a meu pai, Augusto Viana de Sousa, que foi graças a um copo de vinho de Colares que conhecera o grande poeta das “Lapidárias” e dos “poemas do macadame”. Estava eu sentado à proa do paquete, numa chaise-longue, quando um sujeito extremamente elegante e ágil, com um andar compassado e que marca o ritmo das constelações e do universo, por desatenção, entorna sobre a minha camisa branca o vinho de Colares. Fradique, com um movimento enérgico virou-se para trás, para o seu butler, Smith, e rapidamente lhe disse, em inglês, para ir à cabine buscar duas camisas brancas, de linho fino.
Vossa excelência desculpe, mas vinha distraído com a paisagem, e o Colares em vez de se entornar no Smith, que seria uma coisa de família e resolver-se-ia com uma gargalhada e uma partida de whist, foi entornar-se na camisa de sua excelência. Peço mil desculpas, mas não se preocupe, o Smith foi já tratar de lhe trazer duas camisas de linho, brancas e frescas, para que sua excelência use à vontade. Enquanto isso, o Smith tratará de mandar lavar a sua camisa assim que aportemos em Mênfis. O meu nome é Carlos Fradique Mendes, ao seu dispor. Escusado será dizer-lhe, caro jovem, que esta conversa se desenrolou em francês, à altura língua franca dos viajados, dos sportsman e dos intelectuais. Agora não, cospe-se tudo num inglês varrido, de esquina e de enciclopédia.
Mas qual é o problema de se falar, hoje, o inglês como língua franca no mundo inteiro? Perguntei eu, de certa forma estupefacto não só com a história de Fradique e de Marco António, mas também surpreendido com as palavras do senhor que estava sentado a meu lado.
Lembro-me agora que nessa altura andava a estudar cultura e literatura francesas, ainda que a língua de Londres, não da sua lua, me proporcionassem um certo enlevo e levitar, diáfano e líquido.
Meu caro jovem, disse-me o senhor que sabia chamar-se Viana de Sousa, a linguagem e a língua são o reflexo perfeito de um povo, de uma mentalidade, de uma sociedade.

O céu azulava por entre o verde mágico das tílias, uma leve brisa murmurava por entre os galhos das frondosas e quase milenares árvores. O tempo parecia não existir. (continua).

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