terça-feira, 30 de setembro de 2014

A Graça está no...


A Graça, quando menina não tinha graça nenhuma mas cresceu e ganhou graça.
Às vezes Deus dá.
À Graça Deus deu depois dos quarenta, já ninguém dava nada pela Graça.
Aconteceu como se de Terça para Quarta, como se de Quarta para Quinta, todos sem certezas, os dias da semana todos tão iguais.
Aconteceu sem ninguém notar, como quando depois do Verão o Outono, a primeira chuvada e ninguém de guarda-chuva ou gabardine, os sapatos pelos passeios como submarinos e os pés, os passos cautelosos, a imprimir aos corpos meneios de patos.
Ou os sapatos de salto.
Ou a saia mais curta.
Ou a curvas das ancas mais evidentes.
Ou a transparência da blusa.
Ou o decote mais fundo.
Ou os lábios pintados.
Ou a medalhinha no fio de ouro com mais brilho.
Santo António e o menino na medalha, orações nocturnas, sonhos ou insónias e marido nenhum, as noites dantescas na companhia do gato, Dante o gato, os dois no sofá, cada com lugar definido no sofá, a luz do candeeiro de pé e do ecrã de televisão, e um livro.
Quando o livro de poesia, lê em voz alta um ou outro poema ao gato, e já percebeu quais os poetas preferidos do felino, o O’Neill e o Pina.
Assim, a Graça em estado de desgraça, as conversas de Segunda-feira no trabalho vazias das suas palavras, que não se vai pôr a contar as conversas com Dante (com quem?), pelo que sem nada para contar, tudo igual, mais uma vez igual, sem novidades.
Talvez porque a Graça, mesmo ao fim-de-semana respeita a rotina, é organizada (é suposto ser qualidade), arruma os afazeres nas horas como as roupas nos armários, na cómoda as camisolas de lã e de algodão, de Inverno e de Verão, arrumadas (arquivadas!), por cores, preto azul castanho beije, quatro cores em quatro gavetas.
Assim, mesmo no fim-de-semana acorda às ordens do relógio despertador e cumpre horário.
Sábado é dia de ir às compras, verifica previamente o que falta no frigorífico e na despensa, regista as faltas num bloco de notas (faltam sempre as mesmas coisas), e sai de carrinho de compras pela mão como um cão pela trela.
Um cão coxo, uma das rodas tortas desde que comprou o carrinho, apesar de ter passeado o carrinho pelos corredores da loja sob o olhar incomodado e em bico, do senhor atrás da caixa registadora e, apesar do test drive, não percebeu os defeitos da viatura antes de concretizar a compra (acha graça sempre que as pessoas usam a palavra concretizar), désolé, e conclui com um sorriso, porque intimamente sabe rir de si, que da próxima vez, antes de comprar um carrinho de compras vai incluir nas orações a Santo António um par de rodinhas alinhadas e desempenadas, nunca se sabe, talvez no que toca a rodinhas sua divindade seja mais competente, e justifica a si mesma os esdrúxulos pensamentos, isto por ser coisa de gajos.
Depois, no supermercado, de carrinho de mão como cão pela trela, percorre os corredores sempre pela mesma ordem e resiste, em regra resiste, a comprar bolachas com pepitas de chocolate.
A sua fraqueza, bolachas com pepitas de chocolate, incapaz de parar depois de abrir o pacote, guloseima que gosta de acompanhar com um copo de leite simples e frio, mesmo no Inverno, uma ousadia, quase uma irreverência.
E compra, compra sempre, sete maçãs, duas vermelhas e cinco amarelas.
Come pontualmente uma maçã às dez da manhã de todos os dias porque dizem os ingleses ser suficiente para manter médicos à distância.
Assim, passa a manhã nas compras.
Enche a manhã a passear pelo mercado, o cheiro a peixe, quase a mar, a fruta, a flores, a pão, a café e, pelos corredores do super-mercado, sempre na mesma ordem, o cheiro dos produtos de higiene, dos produtos de limpeza, todo um mundo de cremes, loções, detergentes e soluções engarrafadas a plástico.
Todos conhecem a Graça, muitos viram-na crescer, não viram, ninguém reparava na Graça, e garantem em coro afinado, ser boa moça e em coro desafinado que não percebem a sua solidão e, ao caso, cada um tem uma explicação.
Depois faz o almoço, qualquer coisa ligeira, uma sandes, uma salada, cozinhar para uma pessoa é deprimente e quase inútil, felizmente gosta de iogurtes e de cereais.
Depois o café no café do bairro, onde encontra sempre alguém, todos conhecem a Graça, para dois dedos de conversa.
Conversas curtas como o café, sem açúcar e sem afecto.
E isto do sem açúcar é novidade, novidade médica após análise das últimas análises, novidade que a põe a fazer contas ao açúcar por 100 grs. das bolachas com pepitas de chocolate.
Depois a tarde.
As tarefas más: aspirar e limpar o pó, tarefas dantescas derivado do pêlo do gato.
As tarefas boas: ler um livro, ver um filme no sofá.
Às vezes, quando o filme é mau, adormece no sofá, porém, mesmo para sua surpresa, acorda sempre no quarto, na companhia do gato e do despertador.
Depois o Domingo.
O Domingo não é dia de ir à Missa, Santo António seja benevolente, mas já não tem paciência para sermões.
Foi menina de coro mais de vinte anos ou até deixar de ser menina.
Como é que sabemos que já não somos meninas? – Pergunta-se a si própria. – Como? – Insiste na questão.
Apesar dos cabelos brancos pintados a castanho profundo ou a preto absoluto (em função da disponibilidade do produto nas prateleiras do supermercado ou de promoções), dos óculos de ver ao perto (a Graça pela primeira vez de óculos e não lhe ficam nada mal), do pâncreas a reduzir a produção de insulina (deve pensar que é um país produtor de petróleo – pensa a Graça).
O Domingo é dia de fazer a cama de lavado, esta semana os lençóis amarelos bordados a flores pequeninas.
Tem dois conjuntos de lençóis a uso, o outro, branco liso, estão como novos e têm quase vinte anos, só conheceram o seu corpo.
Tem o dobro de lençóis e fronhas de almofadas guardados em naftalina no armário.
Domingo é dia de regar as hortênsias na varanda, a varanda azul por causa das hortênsias, e os vasos com cactos que tem na sala, o seu pequeno deserto.
Domingo é dia de ir buscar o pai ao lar, como se uma encomenda aos Correios, para o almoço de Domingo.
E como todos os Domingos fez sopa de abóbora e pudim, seis ovos, seis colheres de sopa de açúcar, cinco decilitros de leite, um pau de canela, uma casquinha de limão, banho-maria e paciência.
O pai diz que gosta de sopa de abóbora e de pudim.
O pai quase não toca na comida, debica como se um pássaro, e desistiu de fazer perguntas, quando é que me apresentas o namorado, não me digas que não tens namorado, o meu futuro genro, os compadres, um neto com o meu nome, pelo que o almoço passa quase em silêncio.
Faz sempre sopa de abóbora e pudim, para fazer o gosto ao pai.
    - Paizinho, o que quer para o próximo Domingo?
     - Sopa de abóbora e pudim.
Sopa de abóbora que lhe faz companhia todas as noites da semana, trabalha até tarde e cozinhar para uma pessoa é deprimente e quase inútil.
Confessa que já não gosta de sopa de abóbora.
Pudim que coloca num tupperware e que o pai leva para o lar, para dividir ao lanche com a namorada.
O pai tem oitenta anos, uma dentadura postiça, um aparelho auditivo, nada de diabetes, uma bengala e uma namorada. Uma namorada quase igual, pelo que se pode dizer que foram feitos um para o outro.
E foi o pai, num Domingo de sol, os dois a fazer a digestão a passo de tartaruga em passeio pelo jardim, o primeiro a perceber.
    - Estás diferente?
    - Diferente em quê? Se tudo igual.
E não igual, mais gasto e velho.
Será dos óculos? A Graça pela primeira vez de óculos e não lhe ficam nada mal.
O pai de olhos na Graça, olhos de raposa velha, matreira, a tudo perceber e a explicar, que sim, que que tudo igual, mais gasto e velho que ninguém vai para novo, todavia o sorriso igual! Infantil, súbito, instantâneo, subtil, quase invisível, porém sólido e resistente, nada de amargo.
E os sorrisos, mesmos se leves e fátuos, pode levar tempo, anos como os sobreiros, porém acabam sempre por pesar, por engordar, por se notarem nas bocas, nos lábios, mas sobretudo nos olhos.

Raquel Serejo Martins
 

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