quinta-feira, 3 de julho de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - o Flâneur das Sensações



Paris, imaginação, bolero e devaneio.
Eis mais um texto de Gonçalo Viana de Sousa. Mais um texto do seu livro Cadernos de Nicosia, desta feita, uma impressão estranha e misteriosa. Revelação?
A pedido de Gonçalo, deixo-vos o link da música de Maurice Ravel.

Meu querido José, eu, fatal e inevitavelmente, outra vez! Perdoe este velho homem que parece não ter mais nada que fazer. Lembra-se de Maria Adelaide? Pois bem, parece-me que tenho algum encontro psicanalítico com ela, seja quem for, ou com este nome. Não sei bem por que razão.
Escute Ravel enquanto lê mais um texto daquele meu inpublicável livro.
Muito seu.

Gonçalo V. de S.


Boémia de Boulevard (Bolero de Ravel)


Com um passo anguloso, leve, fácil e rápido, chego aos Campos Elísios. Não os de Paris. Os da alma. Efraim, como sempre, a meu lado, melhor dizendo, ligeiramente atrás de mim, tentando acompanhar o meu passo travadinho e, nas palavras do generoso butler, elegante e vagabundo.
Ao longe, no limite da linha do horizonte, quase consigo vislumbrar o boulevard que procuro. Faz calor, muito calor, e a lua, alta como um bronze, cria a falsa sensação de luz. Talvez luar. Gin tónico e pepino, Efraim. Doses neo-aristotélicas de gelo, digo eu.
A noite neste quarto de hotel é como um sonho quente e húmido, como a roupa que cola ao corpo por conta do suor tardio de jantares bem regados. A caixa de charutos, ao canto da chaise-longue. Nicosia é um porto de todos os tempos.
Oiço, constante, o som de uma caixa de tons vermelhos, azuis e amarelos. Cento e sessenta e nove vezes o som do universo a expandir-se.
O oboé também entra, penso, e outros instrumentos de sopro cujos nomes não são necessários. Para quê? Interessa, pois, a música, a melodia, constante, ébria de sensações e de noites estreladas. Noites de boémia doce e sonhadora, vaga e simbólica.
Efraim, pasmado, coloca o monóculo, esconde o relógio de bolso e escuta como um danado.
Abro os olhos e sei-me em Paris, no Bois de Boulogne. É meia-noite e a melodia vai aumentado, lenta e deliciosamente. Já nas grandes avenues da cidade da Luz, o frenesim é tremendo. Bandeiras hasteadas em todas as varandas, longas fitas com as cores nacionais.
Terá (a guerra), acabado?
Foguetes são lançados do monstro de ferro e modernidade. Por todo o lado, mulheres, homens, velhos e crianças dançando ao som da noite e da lua. Paris civilização?
Dos grandes boulevards surgem palhaços em monocletas, ciganos cuspindo fogo, mulheres e homens exóticos montando elefantes com longas trombas cuspindo champagne e confetti. Outros ainda trazem ao pescoço longas serpentes e jiboias. Negros fortes e de braços rochosos vestem saias de palha e juntam-se ao ritmo, enquanto altos homens loiros, bronzeados, dançam de forma estranha com eunucos ruivos. A folia é tremenda!
A música não termina. Não pode terminar! Das bandas de Montmartre chegam os  artistas, (de bock na mão) todos acompanhados de belas ciganas ou luxuosas mulheres enfeitadas de brilhantes verdadeiros pagos pelos moradores do Faubourg Saint-Germain.
O Sacré-Coeur reflectindo a falsa luz da lua, basílica nova e Senhora de prantos que havia de, cedo, chegar. Viúvas, mães, noivas e velhos. Festejem agora a alegria adiantada de um sofrimento adiado.
Ao meu lado passa um bela mulher, que ainda há poucas noites tinha avistado em S. Petersburgo. O seu perfume enrola-se na minha cartola. Sinto no meu bastão o toque suave de uma mão sedosa.
 Karénina?
Que faz ela, bela e nume, original, neste antro de folia, boémia e civilização? Volto-me para ir ao encontro dela. O ritmo e a música são estonteantes. Paris é luz, muita luz! Efraim perdeu-se no meio de um grupo de jogadores. Corro ao encontro dela. Excusez-moi, mesdames, messieurs. A confusão é tanta. A uma esquina, uma bailarina de can-can e o conde (marquês ou barão?) de Montmorency beijando-se, ele com as mãos enrugadas tentando desapertar as vergonhosas ligas de cetim, enquanto ela, de soslaio, tirando notas de 500 francos com muita habilidade, quando ainda há pouco este lhe tinha oferecido, na ópera, um anel de pedras brilhantes.
Senhor, o seu gin, diz-me o semita Efraim, enquanto me estiro na longa cadeira da varanda, fitando o horizonte. Sorvo a bebida. Volto a Paris e à boémia, bolero, folia, c’est la folie! La Folie! Eh-lá-hô, poetas do absinto! Eh-lá-hô, coquettes filhas de mulheres de Second Empire destruídas pela sífilis e pela idade. Que foi que vos aconteceu? Belas como fostes, sois agora pó e esquecimento. E Baudelaire? (Quem tem ele que ver com isto?).
Finalmente, ao pé da escadaria da basílica, encontro Anna, com o cabelo mais curto, mas sempre mãe de todas as belezas e virtudes literárias. No país de Emma Bovary foi Anna Karénina quem destronou a ficção. Ela vira-se para mim e sorri com os seus dentes de marfim, os seus lábios rasgados onde se escondem tempestades sonoras e vendavais cinzentos que seriam para mim como doces carícias divinas. Anna solta gargalhadas espaçosas e volumosas, como a melodia, e, subitamente, a enchente de gente que murmulhava nos boulevards aparece do nada. Elefantes bramindo, tigres, leões e panteras, com trelas de diamantes, rugindo, enquanto califas poderosos puxam-nos para perto da populaça.
É o fogo cuspido, o cheiro a vinho, a absinto e a champagne, o ruído da música infinita, os ventres das raparigas de clube e de espectáculo, tudo isto inebria a alma de um vagabundo. A multidão passa e Anna, novamente, desapareceu. O ritmo da melodia é apoteótico. Ida Rubinstein abraça-me e beija-me. Deixo-me ir pelo sabor da sua saliva doce e acolhedora. Uma casa temporária.
Entrámos no meu quarto. Efraim já escondeu a carteira e os valores no cofre. Nunca se sabe. Deito-a na cama. O seu corpo é quase perfeito, até o pequeno sinal por debaixo do mamilo esquerdo parece um toque divino. O seu umbigo, pequeno como uma concha, os quase invisíveis e loiros pêlos eriçados.
Quase perfeita.
Olho para a escrivaninha do meu quarto e vejo a fotografia dela.
Maria Adelaide.
 Levanto-me como uma tempestade e viro a fotografia para a parede.
Maria Adelaide. Maria Adelaide. Maria Adelaide.
Maria Adelaide. Maria Adelaide. Maria Adelaide.
Maria Adelaide. Maria Adelaide. Maria Adelaide.
Je ne suis pas capable, Ida. J’aime une autre femme. Digo-lhe num francês culpado. Mais c’est de la folie, mon chér. N’existe jamais. Tu m’a créé, diz-me ela na sua voz sedutora. Sors, putain! Sors!
Ela sai desfeita em lágrimas. Volto a olhar para a tua fotografia, Maria Adelaide. Eu sou teu, meu amor bom, teu. Todo teu.
Abro os olhos. O sol começa a raiar em Nicosia. A minha cabeça parece uma mó em delírio. A ressaca de uma garrafa de gin e de 2 kg. de pepino.
Efraim, um whisky e talvez esquecimento.



 https://www.youtube.com/watch?v=ps2fx75PR2Y (Eis a melodia)

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