Paris, imaginação, bolero e devaneio.
Eis mais um texto de Gonçalo Viana de Sousa. Mais um texto do seu livro Cadernos de Nicosia, desta feita, uma impressão estranha e misteriosa. Revelação?
A pedido de Gonçalo, deixo-vos o link da música de Maurice Ravel.
Meu querido José, eu, fatal e inevitavelmente, outra vez! Perdoe este velho homem que parece não ter mais nada que fazer. Lembra-se de Maria Adelaide? Pois bem, parece-me que tenho algum encontro psicanalítico com ela, seja quem for, ou com este nome. Não sei bem por que razão.
Escute Ravel enquanto lê mais um texto daquele meu inpublicável livro.
Muito seu.
Gonçalo V. de S.
Boémia de Boulevard (Bolero de Ravel)
Com um passo anguloso, leve, fácil e
rápido, chego aos Campos Elísios. Não os de Paris. Os da alma. Efraim, como
sempre, a meu lado, melhor dizendo, ligeiramente atrás de mim, tentando
acompanhar o meu passo travadinho e, nas palavras do generoso butler, elegante
e vagabundo.
Ao longe, no limite da linha do
horizonte, quase consigo vislumbrar o
boulevard que procuro. Faz calor, muito calor, e a lua, alta como um
bronze, cria a falsa sensação de luz. Talvez luar. Gin tónico e pepino, Efraim.
Doses neo-aristotélicas de gelo, digo eu.
A noite neste quarto de hotel é como um
sonho quente e húmido, como a roupa que cola ao corpo por conta do suor tardio
de jantares bem regados. A caixa de charutos, ao canto da chaise-longue.
Nicosia é um porto de todos os tempos.
Oiço, constante, o som de uma caixa de
tons vermelhos, azuis e amarelos. Cento e sessenta e nove vezes o som do
universo a expandir-se.
O oboé também entra, penso, e outros
instrumentos de sopro cujos nomes não são necessários. Para quê? Interessa,
pois, a música, a melodia, constante, ébria de sensações e de noites
estreladas. Noites de boémia doce e sonhadora, vaga e simbólica.
Efraim, pasmado, coloca o monóculo,
esconde o relógio de bolso e escuta como um danado.
Abro os olhos e sei-me em Paris, no Bois de Boulogne. É meia-noite e a
melodia vai aumentado, lenta e deliciosamente. Já nas grandes avenues da cidade da Luz, o frenesim é tremendo. Bandeiras hasteadas
em todas as varandas, longas fitas com as cores nacionais.
Terá (a guerra), acabado?
Foguetes são lançados do monstro de
ferro e modernidade. Por todo o lado, mulheres, homens, velhos e crianças
dançando ao som da noite e da lua. Paris civilização?
Dos grandes boulevards surgem palhaços em monocletas, ciganos cuspindo fogo,
mulheres e homens exóticos montando elefantes com longas trombas cuspindo
champagne e confetti. Outros ainda trazem ao pescoço longas serpentes e jiboias.
Negros fortes e de braços rochosos vestem saias de palha e juntam-se ao ritmo, enquanto
altos homens loiros, bronzeados, dançam de forma estranha com eunucos ruivos. A
folia é tremenda!
A música não termina. Não pode terminar!
Das bandas de Montmartre chegam os artistas, (de bock na mão) todos acompanhados
de belas ciganas ou luxuosas mulheres enfeitadas de brilhantes verdadeiros
pagos pelos moradores do Faubourg
Saint-Germain.
O Sacré-Coeur
reflectindo a falsa luz da lua, basílica nova e Senhora de prantos que havia de,
cedo, chegar. Viúvas, mães, noivas e velhos. Festejem agora a alegria adiantada
de um sofrimento adiado.
Ao meu lado passa um bela mulher, que
ainda há poucas noites tinha avistado em S. Petersburgo. O seu perfume
enrola-se na minha cartola. Sinto no meu bastão o toque suave de uma mão
sedosa.
Karénina?
Que faz ela, bela e nume, original,
neste antro de folia, boémia e civilização? Volto-me para ir ao encontro dela.
O ritmo e a música são estonteantes. Paris é luz, muita luz! Efraim perdeu-se
no meio de um grupo de jogadores. Corro ao encontro dela. Excusez-moi, mesdames, messieurs. A confusão é tanta. A uma
esquina, uma bailarina de can-can e o
conde (marquês ou barão?) de Montmorency
beijando-se, ele com as mãos enrugadas tentando desapertar as vergonhosas ligas
de cetim, enquanto ela, de soslaio, tirando notas de 500 francos com muita
habilidade, quando ainda há pouco este lhe tinha oferecido, na ópera, um anel
de pedras brilhantes.
Senhor, o seu gin, diz-me o semita
Efraim, enquanto me estiro na longa cadeira da varanda, fitando o horizonte.
Sorvo a bebida. Volto a Paris e à boémia, bolero, folia, c’est la folie! La Folie! Eh-lá-hô, poetas do absinto! Eh-lá-hô, coquettes filhas de mulheres
de Second Empire destruídas pela
sífilis e pela idade. Que foi que vos aconteceu? Belas como fostes, sois agora
pó e esquecimento. E Baudelaire? (Quem tem ele que ver com isto?).
Finalmente, ao pé da escadaria da
basílica, encontro Anna, com o cabelo mais curto, mas sempre mãe de todas as
belezas e virtudes literárias. No país de Emma Bovary foi Anna Karénina quem
destronou a ficção. Ela vira-se para mim e sorri com os seus dentes de marfim,
os seus lábios rasgados onde se escondem tempestades sonoras e vendavais
cinzentos que seriam para mim como doces carícias divinas. Anna solta
gargalhadas espaçosas e volumosas, como a melodia, e, subitamente, a enchente
de gente que murmulhava nos boulevards
aparece do nada. Elefantes bramindo, tigres, leões e panteras, com trelas de
diamantes, rugindo, enquanto califas poderosos puxam-nos para perto da
populaça.
É o fogo cuspido, o cheiro a vinho, a
absinto e a champagne, o ruído da música infinita, os ventres das raparigas de clube
e de espectáculo, tudo isto inebria a alma de um vagabundo. A multidão passa e
Anna, novamente, desapareceu. O ritmo da melodia é apoteótico. Ida Rubinstein
abraça-me e beija-me. Deixo-me ir pelo sabor da sua saliva doce e acolhedora.
Uma casa temporária.
Entrámos no meu quarto. Efraim já
escondeu a carteira e os valores no cofre. Nunca se sabe. Deito-a na cama. O
seu corpo é quase perfeito, até o pequeno sinal por debaixo do mamilo esquerdo
parece um toque divino. O seu umbigo, pequeno como uma concha, os quase
invisíveis e loiros pêlos eriçados.
Quase perfeita.
Olho para a escrivaninha do meu quarto e
vejo a fotografia dela.
Maria Adelaide.
Levanto-me como uma tempestade e viro a
fotografia para a parede.
Maria Adelaide. Maria Adelaide. Maria
Adelaide.
Maria Adelaide. Maria Adelaide. Maria
Adelaide.
Maria Adelaide. Maria Adelaide. Maria
Adelaide.
Je
ne suis pas capable, Ida. J’aime une autre
femme. Digo-lhe num francês
culpado. Mais c’est de la folie, mon
chér. N’existe jamais. Tu m’a créé, diz-me ela na sua voz sedutora. Sors, putain! Sors!
Ela sai desfeita em lágrimas. Volto a
olhar para a tua fotografia, Maria Adelaide. Eu sou teu, meu amor bom, teu.
Todo teu.
Abro os olhos. O sol começa a raiar em
Nicosia. A minha cabeça parece uma mó em delírio. A ressaca de uma garrafa de
gin e de 2 kg. de pepino.
Efraim, um whisky e talvez esquecimento.
https://www.youtube.com/watch?v=ps2fx75PR2Y (Eis a melodia)
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