Eis um texto de Gonçalo Viana de Sousa, com o título de "Impressões ao luar", do seu anti-livro Cadernos de Nicosia.
Este texto surgiu sem nenhuma recomendação, apenas no habitual envelope de papel amarelado e lacrado com as iniciais G. V. S.
Quem somos nós, Efraim, para lá deste
luar de Agosto?
O copo acompanha-me como uma sombra,
como um piano feito somente de teclas negras.
Quem será Maria Adelaide? Quem será ela?
Quem será essa mulher de branco, de pensamentos ebúrneos e de carícias de Primavera?
Faço viagens para dentro e não me lembro de alguém com este nome…
Os anos não pesam tanto como as
experiências entre o ácido da alma e o álcool portador de novas modernidades.
Modernista, eu? Como?
Se falo em Literatura, Efraim, sob este
luar prateado e romântico, inevitavelmente viajo até às florestas bávaras,
acabando por adormecer, distante, num castelo escocês em ruínas, embalado com o marulhar das ondas célticas de um mar ante-adormecido.
Mas nada disto interessa. A questão do
eu muito menos. Já foi algo ruminado tempo demais por gente que não era gente
mas o mundo todo em palavras. Depois dele(s), o que ficou por dizer?
Sou, sem sombra de dúvida, a impressão
que faço de mim próprio, a impressão que as palavras me permitem criar. Sou,
assim, feito de palavras e de ficção. De uma ficção real, verdadeira,
objectiva.
Hoje não quero música, Efraim. Podes
desligar esse dispositivo e trazer a garrafa de whisky. Sem gelo, tenho sede,
muita sede. Traz algo para dormir, também. Uma dose de amor e de esperança, mas
ao de leve. Hoje não quero música, nem humanidade. Quero este luar para sempre,
prateado, romântico, meu, para sempre. Nada mais.
Quero fundir-me nesta noite que em
Nicosia me parece a vida.
Maria Adelaide, Ida Rubinstein, Bovary,
Karénina, quem sois? O silêncio olímpico e estupidamente beatífico é a minha
resposta. (A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida).
Bebo o whisky de um só gole.
Efraim, que foi que a vida fez comigo?
O fiel butler olha para mim e sorri, com
aquele sorriso imaginário que sempre vislumbrei e diz-me, a realidade, Viana de
Sousa.
Volto para dentro do quarto, fecho a
porta da varanda e deito-me na cama.
Efraim, podes sair, por agora não
preciso de mais nada. Apago a luz e tento chorar em vão, com a esperança
ridícula que as minhas lágrimas tenham a cor e o sabor de uma caneta de feltro.
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