sexta-feira, 18 de julho de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - o Flâneur das Sensações


A realidade é aquilo que entendermos.
Deixo aqui as palavras de Gonçalo, a propósito deste texto, mais um dos seus Cadernos de Nicosia, desta vez com o título "Noites de Verão":

Caro José,

Antes de mais, desculpe-me estas horas tardias,mas, como lhe disse na nossa soirée da semana passada, onde teve oportunidade de conhecer (...), não desista dos significados. (...) Ainda há muito para conversarem e para conhecerem. Mas lá chegaremos, com o tempo.
De Nicosia para a realidade, envio-lhe mais uma impressão deste meu caderno impublicável. Receio que não possa enviar muitas mais impressões, por temo estar a cansar os leitores sempre com a mesma temática. Sabe, a minha escrita é bastante temperamental, ao contrário daquilo que julgo ser, um racional falhado, mas com a crença de que me posso redimir.
Sim, imagino que quereria perguntar , outra vez, o porquê de Maria Adelaide, mas , querido, não sei o que lhe dizer, verdadeiramente.
Leia, beba, viaje e ame as coisas belas. Eis aquilo que julgo ser mais sensato, sem querer cair em pedantismos canónicos e de bolso. Enquanto isso, publique estas palavras e sugira a "Summertime" de Ella Fitzgerald e Louis Amstrong.
Daqui a cinco minutos, um táxi estará à sua porta para o trazer até minha casa.
Até breve e seu e vossos (isto é para os leitores)

Gonçalo V. de S.



Na cidade de Lost Heaven tudo era possível.
Poderia ter sido assim o início da minha vida literária, Efraim. Mas não. Para quê? A realidade é suficiente, e, para além disso, não precisa de mim assim como não precisou daquele filósofo que era pastor e, além do mais, mentiroso.
Mas voltemos à cidade de Lost Heaven. Em jovem, tudo era possível. O mundo pela frente. Dinheiro, fama, carros, bebida, mulheres. E a vida?
Era uma noite de Verão, quente e colorida, uma noite como estas noites de Nicosia. No restaurante, a jukebox chiava algo démodé. Papa John ensinava-me a beber whisky, com e sem gelo.
Boy, dizia-me Papa John, bebe sem gelo quando tiveres com muita sede, ajuda o estômago e modera o humor. Bebe com bastante gelo se te quiseres afastar do mundo, ou, simplesmente, para criar efeito. Nice and easy!
Saíamos do bar italiano por volta das duas da madrugada, Efraim, e o Studebaker Commander Regal, o rocket, como lhe chamava Papa John, voava pelas largas ruas do downtown! Que futurismo era o nosso! A garrafa de Glenfiddich era a testemunha das noitadas na cathouse de Little Italy.
Que mestre foi Papa John, Efraim! Elegante, culto e bêbado! O seu vício por carros era quase tão excessivo como aquele que tinha pelas coisas belas.
Duas garrafas de Glenfiddich depois, o rocket voava até à costa, muitas vezes perseguido pelas sirenes da polícia que, com oito ou nove notas de 20 dólares, fechava os olhos e pensava em planos-poupança reforma. Nunca soube de onde lhe vinha o dinheiro, nem o estatuto e respeito que tinha naquela fantástica e fingida cidade de Lost Heaven. Desde os Greasers até à classe política, todos conheciam, conversavam e respeitavam Papa John.
Efraim, traz aquela garrafa poeirenta que está na mala. E dois copos. Senta-te ao meu lado. Abre a garrafa, mas não tires o pó. É o pó que lhe dá o sabor. Aprendeste isso com Papa John? O que achas? Efraim olha-me e esboça um sorriso comprometedor. O líquido de uma cor âmbar, brilhante e sedosa, cai nos copos como corpos jovens e nus em lençóis de seda. Onde ia eu, Efraim? A caminho da praia, Viana de Sousa. (Eu e Efraim, em privado, sempre nos tratamos por tu, e este sempre me chamou de Viana de Sousa, em privado).
A caminho da praia, pois!
O Sol começava a raiar na linha de horizonte como um prefácio. Paper Coast era uma longa linha de praias ao longo de trinta e cinco quilómetros. Na ponta do Cape End um farol girava em torno de uma luz que parecia irreal, àquelas horas tanto tardias como matutinas. Saíamos do carro e sentávamo-nos na areia branca como folhas de cadernos virgens. Papa John via o nascer do Sol em silêncio. De seguida,virava-se para mim e dizia, depois da escuridão vivemos para sempre. Don’t Forget this, kid. E eu nunca esquecerei. Adormecemos na praia, ao som de Summertime, de George Gershwin, mas na voz de uma jovem mulher e de um artista de nome, enquanto as ondas do mar nos embalavam em sonhos que pareciam realidade.
Horas depois, acordo com o calor inevitável, não sei se do meu corpo se do mundo, e com a trágica luz da verdade. Papa John desapareceu, Efraim, e eu encontro-me sozinho, num dos bancos ao longo do Sena, com uma mefistofélica dor de cabeça. O calor aperta e ao longe os varredores fazem o seu trottoir matinal. A noite ainda não desaparecera por completo, pois as luzes do monstro de ferro ainda estão acesas e ainda se ouvem alguns cantos de vitória pelas ruas. Mas como fui eu parar a Paris, Efraim? A alma, Viana de Sousa? Não, a vida. A inevitável e dolorosa realidade. Dou por mim com o corpo todo dorido por ter dormido, pensava eu que tinha dormido num banco de jardim, quando o que tivera verdadeiramente acontecido fora o meu pânico de sair de casa depois de ter expulso Ida Rubinstein e de ter olhado para a fotografia de Maria Adelaide. Outra vez Maria Adelaide, Viana de Sousa. Sim, outra vez…
Tento voltar para o meu quarto de hotel, mas o lixo nas ruas é demasiado. Deixo-me ficar pela beira-rio, à espera que alguma promessa de jornais ou croissants aconteça. Ao longe, pareço vislumbrar o que parece ser uma mulher vestida de branco, mas esfrego os olhos e tudo desaparece.
Sem sucesso, regresso derrotado ao quarto de hotel e rapidamente me deito na cama, com a camisa toda amolgada e suada.

Depois da escuridão vivemos para sempre.

Tenho sonhos horríveis, sonhos com hálito de nevoeiro e humidade. Sonhos com rosto de doença e paranoia. Tento acordar, mas tudo em vão. Eu, estupidamente racional, consciente da minha inconsciência dentro de um sonho, não consegui acordar, e ainda hoje não sei porquê.
Dou por mim num jardim abandonado, com ciprestes e grades envelhecidas. Um cheiro acre mistura-se ao musgo amarelado que cobre o chão.

Depois da escuridão vivemos para sempre.

Uma mulher de branco vem, pairando, até ao meu encontro. Toda ela tem um brilho lúgubre e ebúrneo. Quase consigo ver o seu rosto, mas acordo todo suado, sem noção do lugar onde me encontro, até que me apercebo que estou nessa cama atrás de nós. Tudo não passou de um sonho, Efraim. Receio ser incapaz de separar a teia das duas realidades, a ficção e o mundo real.
Efraim bebe, calmamente, o que resta no seu copo, fecha os olhos e observa-me com ares de Jung. Viana de Sousa, acorda. Como assim, acorda? Cala-te e acorda. Fico sem palavras, enquanto Efraim volta a encher o seu copo, desta vez até ao limite entre o aceitável e o reprovável. Levanto-me e apoio os cotovelos no corrimão de pedra, meio tonto por conta do pó do whisky. Volto-me para Efraim e volto a ver a mulher de branco.
Maria Ad…
Um som distante e contínuo desvia-me a atenção. Volto a olhar para a mulher de branco e juro que vi Maria Adelaide. Juro por todas as coisas ficcionais. Mas não tenho a certeza, pois no momento seguinte abri os olhos e é de manhã, aqui, em Nicosia. O calor aperta e Efraim já tem tudo pronto para a nossa viagem até à costa.

Depois da escuridão vivemos para sempre.





 https://www.youtube.com/watch?v=MIDOEsQL7lA (O link da música)

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