sexta-feira, 11 de julho de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - o Flâneur das Sensações



Meu querido José.

O texto, a impressão que agora lhe envio por estafeta (desculpa as horas tardias, pois só agora lhe pude enviar esta resma de nonsense!) não requere nenhum tipo de apresentação ou introdução com laivos literários, como até agora lhe pedi. Transcreva estas palavras escritas à pressa e com caligrafia de fogo e tempo.  Peço-lhe que encontre o arranjo de Debussy intitulado "Rêverie". É fundamental que o apresente com o texto! Sem ele, NADA feito! Os leitores que o oiçam vezes sem conta ao longo da leitura. Um pouco de infinito mascarado de náusea nunca fez mal. E isso basta.
Não me pergunte, outra vez, por Maria Adelaide. Não lhe sei responder, nem quero. O tempo, meu jovem amigo. Aprenda a saber o tempo. Mas chega de conselhos. Nunca fui bom conselheiro. Espero por si ainda esta noite, depois do texto, em minha casa. Quero apresentar-lhe alguém.
Até já e, como sempre, muito seu.

Gonçalo V. de S.

(Insónias Impressionistas - Debussy "Rêverie") -  https://www.youtube.com/watch?v=y5ot-88UV-Y


            Sim, é a noite que entra neste quarto de tons nocturnos. E com um sopro suave e vagaroso, azul e amarelado, abre-me os olhos de luz pálida.
O que é a luz?
            Desço a avenida e ainda consigo acreditar na humanidade. Efraim, Efraim, que foi feito do nosso tempo? Abandono a vontade de descer a avenida como abandonei a escadaria que me levaria à varanda do outro lado da tempestade. Neste quarto de hotel, em Nicosia, com a escuridão azulada a desmaiar em verde amarelado, como que adormecendo nos braços de Vénus, é que me encontro com a vida. Esqueço as grandes avenidas das cidades países. Esqueço os grandes boulevards onde poderia ser personagem de um romance de oitocentos. Tudo isso é mentira. Mentira e a minha fome de mundo inventado pelo papel de uma resma esquecida num quarto de Paris, talvez, ainda que Alexandria me bafeje com os seus ares quentes, laranjas e pensativos. Laranjas, quentes e pensativos.
            Esqueço o copo de whisky já gasto, velho companheiro, no corrimão de pedra da varanda deste meu quarto de hotel que me parece a vida inteira. Que fiz eu? Parece-me que toda a vida é um copo de whisky esquecido numa varanda de um quarto qualquer. Esquecimento e silêncio.
            Sento-me numa das cadeiras de verão. A noite é quente, abafada e pensar é um combate com os suores interiores. Sangue e angústia. Lembro-me de Ida Rubinstein e penso na maneira estupidamente astronómica com que me encontrei com ela. Como, sendo eu um homem nascido em meados do século XX, poderia encontrar-me com uma mulher que morreu caquética a meio do século? Rir é pouco. Mas a loucura tem precedentes menores e bem mais frágeis.
            Mas o corpo dela, e aquele sinal debaixo do seio esquerdo... Pergunto-me onde irá parar esta loucura ficcionalmente verdadeira. Pergunto-me onde irei terminar os meus dias de solidão acompanhada, se não sou capaz de distinguir a verdade da ficção, ou, melhor dizendo, uma realidade de outra. Fecho os olhos e todo um mundo diferente me aparece. É Paris, como sempre, e os boulevards. É Moscovo ou S. Petersburgo e o caminho-de-ferro. E surgem também Ida e Emma e Anna. Rio-me tanto e de forma grotesca, quase romântica. Impressionante é a maneira como personagens literárias entram na minha vida com a facilidade que nunca tive em beijar. Maria Adelaide.
            Mas é de noite. Nicosia é uma cidade pensativa e triste por fora. Por dentro, quem somos nós, Efraim? Seres de sentimentos absolutos? Criações de maldades terceiras? Tenho medo que sejamos marionetas na mão de um qualquer Arquitecto ainda mais senil que todos nós.
            Nada disso interessa. Nada disso vale um olhar. Interessa, sim, existir.

Existir muito. Existir muito. Existir muito. Existir aqui, agora, neste momento e nesta noite de insónia ou de algo que se parece com uma insónia mas que é a vida, grande e invevitável.

E o céu de Nicosia e a noite desta cidade de sol é minha, para sempre.

 Para Sempre.






















          




























































Pensei no silêncio que seria se acabasse esta impressão com a palavra Sempre. E sempre é demasiado tempo para se ter alguma coisa que não seja a solidão. Levanto-me e vou buscar o copo esquecido como quem se lembra que o perdão é possível. Que foi que me fiz, Maria Adelaide?
            O que me aconteceu?
            Efraim! Whisky, em doses Tolstoianas! E uma aspirina também.
            Agora sim, ébrio de realidade, posso terminar esta quase impressão.
Rêverie.

            

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