A Ana trabalha como recepcionista no consultório de um dentista.
Ninguém gosta de ir ao dentista.
Ninguém gosta especialmente da Ana.
A Ana não tem ninguém a quem telefonar para tomar um café numa
esplanada, ir ao cinema, passear na praia.
Como é que isto aconteceu: devagarinho.
E mais não sabe explicar.
A Ana gosta muito de cinema.
Quase toda a gente gosta de cinema.
Podia telefonar a uma amiga (Qual?), uma prima (Qual?), a uma colega
de trabalho (Qual?), a um dos sobrinhos (Melhor não.).
Podia entreter os sobrinhos, tem cinco sobrinhos das duas ocupadíssimas irmãs, porém desistiu à terceira tentativa (à terceira é um modo de dizer, foi provavelmente à décima, à décima primeira, a Ana não conta, insiste, não desiste, insiste, sai derrotada), porque, sem condescendências, escolheram sempre o filme e porque insistiram em escolher películas previsíveis e deprimentes, das que rotulam de comédias românticas, como se o amor fosse coisa de rir até à dor de barriga, até às lágrimas nos olhos, e não de sorrir de afecto.
Podia entreter os sobrinhos, tem cinco sobrinhos das duas ocupadíssimas irmãs, porém desistiu à terceira tentativa (à terceira é um modo de dizer, foi provavelmente à décima, à décima primeira, a Ana não conta, insiste, não desiste, insiste, sai derrotada), porque, sem condescendências, escolheram sempre o filme e porque insistiram em escolher películas previsíveis e deprimentes, das que rotulam de comédias românticas, como se o amor fosse coisa de rir até à dor de barriga, até às lágrimas nos olhos, e não de sorrir de afecto.
E nunca riu, nem sorriu, quase chorou: de raiva!
E não chorou, pois tudo se aprende ou se perde.
Assim começou a ir ao cinema sozinha, obviamente evitando comédias
românticas e outros êxitos de bilheteira. As salas de cinema meio cheias, o que
mal camuflava a sua solidão, ela na terceira fila a partir do ecrã, sozinha na
fila, sozinha no iluminado intervalo.
Depois as cassetes VHS, os downloads da internet, ela nada user
friendly, as salas de cinema depois de meio
cheias, completamente vazias, depois de vazias fechadas, para abrirem
transformadas em lojas da China, como se outro o país.
E pensa que pouco ou nada sabe sobre cinema chinês, assim de repente
lembra-se de Adeus Minha
Concubina, um filme de 1993, e lembra-se que tinha
23 anos em 1993 e que a trabalhar desde os dezoito ia ao cinema a expensas
próprias, lembra-se que a mãe dizia que era um desperdício de tardes de sol e
de dinheiro.
Para a mãe tudo era um desperdício de tardes de sol e de dinheiro, e
pensa que nunca viu a mãe passar uma tarde de sol fora da cozinha.
Foi cozinheira, criou as filhas a rissóis de carne e de camarão que
vendia para fora, duas filhas formadas à custa de rissóis de carne e de camarão,
e a terceira, a mais nova, a Ana, que para seu desgosto não quis estudar nem
sabe bem o que quer da vida, dizia, com o cuidado de não usar a palavra
desperdício.
Em rigor a mãe era costureira, porém a viuvez precoce obrigou-a a
acrescentar às horas dos dias, o labor de cozinheira das horas das noites. Aos
cartões de contacto como costureira, acrescentou a filha mais velha, a
esferográfica azul e na letra de menina de escola primária que então era: fazem-se bolos e rissóis para fora.
A verdade é que bolos poucos fez, e não que não lhe saíssem bons e
conformes às fotografias dos livros de receitas, nem que os não desenformasse
inteiros e perfeitos, o problema era ulterior, no momento de os decorar, todos
sem graça, e como primeiro as bocas comem com os olhos, uma desgraça, assim,
pelos bolos o negócio não prosperou, e a bem dizer nem falta fez, porque os rissóis
um sucesso, quantos mais fazia mais vendia, no fogão duas frigideiras a
borbulhar em permanência, e a casa a cheirar a fritos, desde a alcatifa do chão
às sanefas dos cortinados, pelo que a mãe da Ana passou a atender as clientes
da costura ao domicílio, conciliando sempre que podia as provas de roupa com a
entrega de encomendas de rissóis, tudo cartando, caixa de costura, tecidos e
fritos, num carrinho de mão que puxava como um elefante pela trela pelo chão da
cidade.
Enfim, continuando, não tem nenhum realizador chinês que a encante,
diz a verdade Ana, repreende-se a si própria, não se lembra de nenhum, somos
tão descuidados que metade do que dizemos são mentiras sobre minudências, e
conclui, quando os chineses começarem a fazer cinema, quando o cinema for
negócio da China, vão especializar-se em comédias românticas, conclui com
desdém e orgulho na piada que acabou de magicar, para se arrepender de
imediato, porque sabe que só os ignorantes são patetas o suficiente para rir e
desdenhar sobre o que nada sabem, e no entanto há dias em que lhes tem inveja, aos
ignorantes, explica-se, não é bonito mas é assim, por perceber que são
construtores de felicidades sólidas.
No seu caso sólida: a solidão.
A Ana trabalha como recepcionista no consultório do Dr. Jardim há
mais de vinte anos.
Quando entrou em funções, era uma rapariga nova, o corpo pouco gasto,
os sonhos por usar, e o Dr. Jardim um homem de meia-idade, uma dentadura
impecável, que o fazia sorrir por tudo e por nada, uma cabeleira, apesar do
cinza nas fontes, farta e forte.
Agora é ela a que está nisso a que chamam de meia-idade, uma dentadura
razoável, come demasiados chocolates, o cabelo pintado em tons de cobre e mais
quarenta quilos.
Engordou à razão de dois quilos por ano, de forma lenta e inexorável, culpa
do chocolate e da solidão.
E entre a solidão e a solidão, apenas o Dr. Jardim.
O Dr. Jardim que também gosta de cinema.
O Dr. Jardim que há 20 anos atrás a convidava para ir ao cinema.
Era Verão, depois do cinema um refresco numa das esplanadas da praça,
mesmo há 20 anos ninguém dizia refresco, o Dr. Jardim dizia e efectivamente o
corpo refrescava.
Foi um Verão fresco e feliz.
Trabalhou durante todo o Verão, dentro do conforto do ar condicionado
do consultório do Dr. Jardim, dentro do ar condicionado das salas de cinema, do
shopping, do supermercado, a ventilação do carro, a ventoinha de casa, a brisa
nocturna residente nas esplanadas da praça.
A Ana a levitar dentro de vestidos finos e frescos, todos feitos pelas
mãos da mãe. Vestidos que antes de vestir farejava como um cão de caça, para
despistar o medo maior de encontrar o cheiro a fritos no tecido, porque o
cheiro a fritos sempre no seu nariz.
A respirar um ar artificialmente suportável, em estado de respiração
assistida.
O Verão quente, em chamas, o ar irrespirável.
A Ana dentro de um balão.
A Ana e o Dr. Jardim dentro de um balão.
Sobe, sobe, balão sobe
Vai pedir àquela estrela
Que me deixe lá viver e sonhar
Alheios às catástrofes num Verão que ficou para a história pela
quantidade de incêndios, de terra ardida, de terra carbonizada.
Até que o fim do Verão, as primeiras chuvas, sobre os corpos
casaquinhos de malha, e a mãe da Ana ao perceber, boca afiada de alfinete, óleo
a ferver, a rebentar o balão, como quem inadvertidamente a coser, apesar do
dedal, pica um dedo.
E descuido nenhum, que a mãe da Ana nunca deixou queimar um único rissol,
nem tolheu uma peça de roupa por mal medir ou mal cortar o tecido, nada de
desperdícios, uma vida inteira sem desperdícios, desperdiçada.
A Ana projectada à revelia e sem destino, a cair no chão sem amparo.
A Ana e a sua dor: ainda nem era amor.
Nem um beijo, nem mãos dadas, apenas conversas intermináveis sobre
cinema.
Foi o Dr. Jardim que lhe apresentou o Bergman, ela encantada, Mónica e o desejo, poderia
o Dr. Jardim ser o desejo?
Como é que era possível não conhecer o cineasta sueco? –
Perguntou-lhe.
Era possível não conhecer o Bergman assim como era possível ter quase
dezanove anos e nunca ter sido beijada, nem beijo de faz de conta, como dizem
são os beijos de cinema, nem beijo nenhum, ou era possível porque cresceu numa
casa onde faltou tudo, até o Bergman menos a comida na mesa (não sabe dizer
quantos rissóis, de camarão ou de carne, comeu na vida, sabe dizer quantos
beijos não deu: todos), menos a roupa no corpo, menos o dinheiro para os livros
da escola, e que se lembre nunca viu o Bergman num livro de escola, talvez se
os livros da escola falassem sobre cinema não tivesse desistido da escola, não
sabe dizer, nunca gostou de estudar, não era como as irmãs, sempre agarradas
aos livros, só tinha olhos para a televisão, ou era possível porque… eram
tantas as respostas possíveis, porém nada respondeu, apenas encolheu os ombros
tentou e esboçou um sorriso torto, o que também era uma resposta possível.
A mãe, que também não sabia quem era o Bergman, boca afiada de alfinete,
a rebentar as suas ilusões-balão, a desalinhavar sem dó todas as esperanças,
talvez sem más intenções, talvez apenas por não perceber que podia ser amor, pois
que apenas queria o melhor para a filha, para todas as filhas, uma vida por
medida e por encomenda, talvez como os rissóis, à dúzia, à dúzia e meia, às
duas dúzias, que a vida não pode ser vivida sem medida, desmedida, que apesar
de viúvo, guarde Deus a finada no seu
eterno descanso, o Dr. Jardim tinha o dobro da sua
idade, tinha filhos da sua idade, sobravam-lhe anos (tecido?) nos ombros, nas
mangas, nas costas, que o tecido e o corte de má qualidade, sem arranjo ou
remendo possível.
Sobravam agora para depois faltar, encolher, mirrar, ficar uva-passa,
porque a vida passa.
E a vida foi passando, mais de vinte anos, enquanto a Ana alargava e
sobrava, dentro da roupa, sobre o sofá, na cadeira ao balcão de recepção no
consultório do Dr. Jardim, a vida foi passando em separado, sem sabermos como
teria sido se juntos, cosidos um ao outro ou fritos como um rissol.
E às vezes, quase nunca, cruzam-se numa sala de cinema, ela na
terceira fila a contar do ecrã, ele na quarta, cada um a camuflar a sua
solidão.
Raquel Serejo Martins
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