sexta-feira, 6 de junho de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações



Como prometido, ainda que com umas horas de atraso (ou engano propositado?) eis a segunda parte do conto Lágrimas de Abril , de Gonçalo, o Flâneur das sensações azuis.


          Agora acompanhas-me, dás-me a tua delicada mão que sente a minha pele já fria e próxima da morte. Tornei-me numa sombra que vive pela tua luz irradiante. A minha doença sempre a tentar fugir de ti, mas eu ainda sou mais forte que a minha doença, o meu amor por ti, Maria Adelaide, ainda é invencível, será sempre invencível, mesmo depois de a morte poisar as suas asas negras sobre mim. Porque a minha força é a tua força, e essa força é inesgotável, inabalável, incansável, incrível.
            A enfermeira diz para me levares para o quarto porque tenho de descansar, mas eu não quero. Eu quero que me leves até ao pátio do hospital para poder saborear um pouco deste ar de Fevereiro. Penso escutar Brahms.
            Leva-me até lá fora, Maria Adelaide, tenho de ver o sol e o céu que tanta falta me estão fazendo.
Vamos, Maria Adelaide. Com certeza que o horizonte já deve ser verde e os lameiros já devem estar cheios de água; com certeza que os bosques já estão com um novo aroma e que  os pássaros já começam a chilrear sem tanta timidez.
            Porque o mundo é fora deste hospital, Maria Adelaide. Tu sabes que eu sei que o mundo é lá fora e sorris para mim como se tudo fosse sempre novo. E é sempre novo, contigo a meu lado.
           
Gosto muito de ti.

            Porque eu quero ir lá fora respirar o mundo e beber um pouco deste Fevereiro que não pode ser sempre doentio. E tu sabes que eu preciso beber o mundo. Tu sabes. Há uma ordem, um equilíbrio que não pode deixar de existir simplesmente.
            Tu sabes.

Vamos, Maria Adelaide, antes que o dia se esgote. Tu sabes. Vamos, Maria Adelaide, vamos ver os choupos e todas as árvores do mundo. Vamos ver as montanhas e o quarto onde nos criam, mentindo. Vamos visitar o mundo todo que fica para lá destas portas e destas palavras.
            Porque, como lágrimas, somos força invisível em cada mês, em cada estação; como o céu, somos uma imensidade poderosa, viva, infinita. O nosso silêncio é a fúria das ondas do mar sem fim que é o nosso amor.
            Vamos, Maria Adelaide. Vamo-nos amar sem fim.
Março. Março é a Primavera a nascer. Como tu, Maria Adelaide, no dia do nosso casamento.
            Parece que não me vão deixar sair deste hospital nunca mais.
         Com certeza que os teus alunos devem estar a estranhar este longo período de ausência. Eles já devem saber. Que interessa isso? Dizes-me com um sorriso enquanto me beijas a testa pálida.
            O hospital é sempre a mesma coisa. (Descrição do hospital com laivos Realistas) Sempre palidez, sempre cal, sempre gente a entrar e a sair. Há toda uma indiferença por cada doença que se encontra em cada sala, em cada quarto, em cada esquina, em cada cadeira. É cada um por si. E tu comigo. Sempre comigo, Maria Adelaide. Sempre.
            Tu sabes tão bem como eu que vou morrer. Tu sabes. Eu sei. E finges ter esperança, na esperança que eu acredite em ti. E eu sempre acreditei em ti, Maria Adelaide. Sempre.
            Os médicos sempre a dizerem-te para eu não fazer nada, para repousar, para descansar, e eu com uma vontade imensa de ver a Primavera nascer em cada manhã, lá fora, no mundo que agora parece muito distante. No mundo que agora é uma manhã de Março.
            Eu com uma vontade maior que uma lei. Uma vontade enorme de ver as amendoeiras em flor, o rio a correr docemente, as flores a desabotoarem cada botão que é um segredo para todo o mundo que é uma grande indiferença.
            Depois de eu morrer, vais-me continuar a amar?
Eu sempre a querer ver o mundo que era fora daquele hospital, daquele quarto, mas os médicos não deixavam, o tempo não deixava. A minha vontade era correr contigo a meu lado, voltarmos a ser felizes em Paris e em todo o mundo, mas os médicos não deixavam, o tempo não deixava.
            Tu a sorrires para mim era um antídoto, uma paz que atravessa o sangue e as veias. Os nossos beijos, Maria Adelaide, eram fogo que queimava por fora e por dentro. As nossas lágrimas eram sangue que fervilhava em cada veia, em cada palpitação.
            Crescíamos dentro das coisas íntimas como ramos de árvores interiores que se espalham pelo corpo que há dentro de cada homem, de cada vontade, de cada sonho. Crescíamos dentro dos segredos e do silêncio que há em cada peito, em cada gesto que carrega um significado.
            A nossa pele era um rio de memórias sem fim. Os nossos corpos eram uma noite estrelada e romântica.
Que vais fazer à nossa casa? Vais vendê-la? Vai deixar de ser Casa? Talvez a nossa Casa seja o nosso amor, as paredes que sustentam todo o nosso querer. Por isso, nunca seremos refugiados ou sem-abrigo, porque nos temos um ao outro. Sempre. És a minha Casa.
            Talvez.
O hospital cada vez mais pálido, mais frio, mais sensabor. A tua mão sempre a aquecer a minha mão. O teu sorriso a aquecer-me por dentro. A tua esperança sempre a dar-me forças, onde já não havia tempo nem lugar para a força. Acentuar o trágico. (Racine teria desviado o olhar).
            Tu, Maria Adelaide, amas-me sem fim, eu sei.
            Tenho medo que te esqueças de mim, depois de morrer. Tenho medo de me tornar numa memória distante, vaga, que seja uma poeira, um pó de uma estante, uma fotografia escondida. Tenho medo que tenhas medo de voltar a falar de mim. Tenho medo que venhas a esconder o nosso amor que nunca acabará.

            Tenho medo que me esqueças.

Porque há forças mais poderosas que o tempo. Há momentos mais eternos que o infinito. Há vidas, Maria Adelaide, que se tornam intemporais nos outros.

            Diz-me, Maria Adelaide, o teu amor por mim vai ser uma arca sem chave, sem tesouro lá dentro? Vais esconder as nossas fotografias? Vais queimar as minhas roupas? Vais ter medo de falar de mim e do nosso amor?

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