Continuamos com as impressões de Gonçalo, o nosso flâneur, do seu livro Cadernos de Nicosia.
Desta vez, realidade e ficção misturadas até ao ponto final mais remoto.
Afinal, vivemos factos ou mentiras necessárias?
"Noites de Tchaikovsky" (Piano concerto n.1 )
Algo estranho parece acontecer sempre
que escuto Piotr Tchaikovsky. É o piano saltitando entre os dedos nervosos e
finos do pianista que actuou esta noite no Teatro de Nicosia. Não sei se será
do piano ou dos instrumentos de sopro, mas toda aquela melopeia romântica e
líquida fez-me percorrer as margens do Neva. Encontro-me na varanda do meu
quarto de hotel em Nicosia e percorro as avenidas de S. Petersburgo em
Novembro. Efraim acompanha-me, com a sua barba rala e o sempre chapéu bonacheirão.
A neve abunda pelas ruas e pelas pequenas ilhas. Viajo no espaço e no tempo.
Julgo ver, ao longe, num dog-cart elegante e colorido, o conde Vronski falando
com Lévin enquanto o príncipe Oblonski bebe longos tragos de vodka.
Encontro-me dentro das palavras de
alguém famoso, num mundo que não foi por mim criado nem pensado. Viajo entre
Moscovo e Petersburgo pelo comboio. As gares atulhadas de caixotes e de moços
de fretes, senhoras com luvas e rendas e sombrinhas.
A neve existe como uma força implacável. Um ou outro camponês carregam os caixotes dos
senhores e das madames da primeira classe. Teodoro? Mujiques?
Ao fundo, uma senhora alta, de porte
elegante, com uns olhos penetrantes e um belo cabelo negro, comprido e com
certeza perfumado, entra numa das carruagens. Efraim tenta acompanhar o meu passo
acelerado até ao encontro desta senhora. Passo por um dos guardas da estação e
pergunto-lhe quem era a tal madame portentosa e com uns olhos que enfeitiçam. O
guarda, ruivo e todo encafuado no seu fato azul escuro, responde-me que é a
princesa Karenina. Agradeço-lhe a informação, entregando-lhe uma nota de cinco
rublos. Efraim olha-me de lado após esta acção.
São duas da madrugada, Tchaikovsky
existe com muita força e perco-me em ficções desnecessárias. Da varanda do meu
quarto, em Nicosia, a esta hora, não se ouve mais que os últimos vagabundos dos
bares e dos clubes. Os homens do lixo em breve começarão a sua ladainha. Ainda
se nota o calor. Efraim dormita no chaise-longue. Sempre nos permitimos viver
um com o outro sem qualquer noção ou pretensão de classe. Isso, diria Sena, são
coisas de “cretino”.
A minha soda está no fim, o ar fresco da
noite finalmente é leve. No horizonte, talvez a promessa de mares e de viagens
em paquetes luxuosos e espaçosos.
Contudo, prefiro o meu quarto a esta
hora da noite em que Tchaikovsky e Efraim me acompanham.
Volto àquela gare. Esforço-me para
alcançar a carruagem da princesa Karenina. Ainda a consigo alcançar. Ainda
conseguimos, menino, diz-me Efraim que por momentos me pareceu João da Ega a
correr.
Fecho os olhos, as imagens sucedem-se
como num filme que se colocou a andar para trás a uma velocidade estonteante.
Estou novamente no quarto. Visto a
camisa e saio para as ruas de Nicosia. Efraim dorme que nem um santo barroco.
Na avenida da Universidade sento-me num
banco. Tenho vontade de fumar a alma, mas são altas horas da madrugada e o mais
sensato é não continuar com a escrita.
Do outro lado da rua, Tchaikovsky sorri
só para mim, caminhando com o seu passo largo, loiro e travadinho.
O piano enceta as notas finais. Abro os
olhos e estou na varanda do meu quarto.
A vida é bela e plena com estas pequenas
ficções (des)necessárias!
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