sexta-feira, 6 de junho de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações



Eis a última parte do conto Lágrimas de Abril. 
Não se esqueçam de Wagner, pois deve ser a vossa companhia ao longo da leitura integral deste conto em três episódios. https://www.youtube.com/watch?v=SRmCEGHt-Qk
A morte também pode ser Redenção?



Diz-me, Maria Adelaide, porque tu sabes que desde aquela tarde de Abril em Paris que eu te amo sempre. Sempre, Maria Adelaide. E cada vez mais. A cada dia que passa, o calor da tua mão é maior. O teu sorriso é mais espaçoso. O teu amor é mais puro e verdadeiro. E tu sabes que eu não sou nenhum sentimentalista. Temos de ser práticos. Escarrar no Romantismo com a vaidade de um flâneur. (Eça teria gostado).
            Mas acredito em ti. Acredito na tua vontade de acreditar. Na tua esperança. Tu sabes.
            Março vai passando. O tempo vai passando. A Primavera cresce cada vez mais. O Sol brilha com mais intensidade. As flores crescem e abundam pelos jardins.
            Há lírios e rosas, Maria Adelaide. Lírios e rosas. Fauna e flora literária: um mundo de significados dentro de mentiras que são outras mentiras.
            Paris deve ser um segredo intemporal, Maria Adelaide, agora que Abril parece querer surgir enquanto Março se vai despedindo ao de leve.
            A minha doença cada vez mais em mim, nos meus ossos, nos meus pulmões, na próstata. Os médicos dizem-te que não devo chegar a Abril. Nova suspensão voluntária da crença. (Coleridge, essa besta, teria detestado o que por aqui vai).
Tu sabes que eu sei o que eles dizem, porque no teu silêncio, no teu dentro tu dizes-me tudo, porque nos conhecemos. Eu sei. E Abril mesmo a chegar. Vais-me amar mesmo quando eu morrer?
Eu só queria estar contigo em Paris, nos Campos Elísios, e voltar a ter forças de jovem. Queria voltar a dizer Amo-te, mas já não consigo. Gosto muito de ti. Não tenho forças para to dizer, mesmo com a tua esperança que sabes que começa a desvanecer. O tempo passa, Maria Adelaide, não podemos fazer nada. Mentira.
            Mas quero estar em Paris, outra e outra vez, contigo, e abraçar-te e beijar-te só porque és minha e eu sou teu e porque os castanheiros já estão em flor. Porque Abril chegou.
            Mas não.
            Mesmo que feche os olhos e pense com muita força não consigo viajar até Paris. 
Porque não tenho força para fechar os olhos. Não tenho braços com força para te abraçar. Não tenho voz para te dizer: Amo-te!
            Nós sabemos que o tempo continua a passar. Não para. Tenho medo que me esqueças.
          Diz-me, Maria Adelaide: Será que vais voltar a Paris e te vais lembrar de como passeávamos por entre os castanheiros e os choupos? Vais-te lembrar de nós e vais sorrir porque sabes que somos felizes? Porque seremos sempre felizes. Eu não me vou esquecer. Nunca.
Os médicos disseram-te que já não era necessário fazer mais quimioterapia. Não valia a pena. Agora é esperar. Vamos esperar, Maria Adelaide. Dá-me a tua mão. Abril é já amanhã. Vamos esperar.
            Leva-me até à janela para ver o mundo; leva-me à janela e deixa-me beber o último dia antes de Abril. E tu levas-me até à janela e dás-me a mão, como sempre. As nossas mãos dadas eram um ritual sagrado, um mito.
           
Gosto muito de ti. (o silêncio)

Tu sabes que eu quero dizer que te amo mas não tenho forças, mas tu sabes que nas palavras gosto muito de ti está muito mais do que gostar, porque tu vês com os olhos de dentro. Tu vês com o coração e sabes o que eu quero dizer. O Inexplicável. O Indizível.
            O fim do dia aproxima-se, a tarde é um horizonte caiado de Sol. A lua surge redonda, cheia, como um poço mágico. Ao longe, as montanhas ainda brancas com a neve de Janeiro nos cumes.
            Sabes, Maria Adelaide, eu vou morrer hoje.
            Tu sabes. Eu sei. Nós sabemos.
            Beija-me com os teus lábios. Abraça-me com toda a força que eu não tenho. Olha para mim e diz-me que nunca te vais esquecer de mim. Nunca. (Amor grande e bom e pleno. Ao longe, Wagner ou a ilusão)
            Porque eu só morrerei verdadeiramente quando te esqueceres de mim. E isso é que é morrer. Ser esquecido por quem nos ama.
              Deita-me na cama porque me dói o corpo todo.
           Deita-me na cama e dá-me a tua mão. Vamos à cerimónia que são as nossas mãos juntas, pela última vez.
            E as nossas mãos são mais, muito mais que as nossas mãos. São passarinhos brancos a voar até Paris. Tu sabes até onde eles voam.
            Deita-me, Maria Adelaide, deita-me, porque já não sei que mais dizer. A minha força é um ínfimo suspiro.
Nunca te esqueças de mim.
A noite surge escura, estrelada. A Lua brilha como uma pedra preciosa, altar de todas as ânsias. A sua claridade vem ao encontro do quarto onde estou deitado, vem ao encontro da minha face pálida como a cal das paredes que era a minha doença.
            Olho para ti, Maria Adelaide.
Gosto muito de ti.
É meia-noite.
            Continuo a olhar para ti e a amar-te ainda mais. Oiço Wagner, algures, em mim, não me perguntes porquê, Wagner, surgiu como a Redenção. Wagner, Maria Adelaide... Wagner...

Abril chegou, Maria Adelaide, nunca te esqueças de mim.

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