quinta-feira, 5 de junho de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações



"Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira." Assim começa o grande romance de Tolstoi Anna Karénina.
Será a banalidade um aspecto da felicidade?
E a infelicidade? Ser infeliz é ser genuíno?
Dúvidas que o Gonçalo me lançou logo após me enviar este conto que também faz parte do livro de contos Homens e Demónios.
Eis a primeira parte deste estranho conto de um homem moribundo.

Janeiro. O tempo era frio. O céu não surgia pintado de azul mar. Não havia segredos ou mistérios no ar. Tudo era frio e nevoeiro e incerteza. Janeiro.
Tu a meu lado, no jardim, no rio, na viagem. O frio era a certeza inevitável e dolorosa do meu amor por ti. Constante. Fiel. A certeza mortal e moribunda de te ter só para mim, em mim, por ti. Éramos um só, caminhando pelas florestas despidas de Primavera e de tempos amenos. Vivíamos de uma forma perfeita todas as definições plenas de amor e felicidade dentro do locus horrendus que outros inventaram.
Depois, a realidade a ser os teus lábios dizendo o meu nome como um segredo bom e grande e justo. Depois os teus olhos pedindo os meus olhos e a minha boca como quem pede: água. Depois o teu sorriso a ser o meu sorriso. O teu palpitar a ser o meu palpitar. O teu corpo a pedir o meu corpo como uma súplica morna: amor. O teu vaso acolhendo, sem medo ou receio, a minha vida, o meu futuro que, inconsciente, pedia: vida. És a minha vida, dizia-te, enquanto os leitores acreditavam, ou não, nos momentos que só nós vivemos e não vivemos.
O tempo. Sempre.
Escrevo para poder respirar e para não ter medo da verdade. O que é a verdade? O que é a mentira? Verdades ficcionais? Mentiras reais? Que interessa tudo isso? Para que serve o mundo e a vida?
            Agora estou nesta cadeira de rodas e tu sorris-me e fazes-me feliz neste momento que é todo o tempo. E esta cadeira de rodas prende-me o corpo que quer ir beber desse ar fresco de Janeiro, que sendo doentio, é fresco, porque, para mim, é a liberdade de uma doença que me aprisiona. E a doença que há em mim é terminal, dizem os médicos.
Num momento estamos em Janeiro, saboreando toda uma paisagem. Noutro momento tens uma doença terminal. Inevitável. Que anuncia o fim de tudo o que foram os teus projectos, de tudo o que foi a tua vida até agora.
            Num momento, o mundo faz sentido, noutro, não.
Tu, Maria Adelaide, sempre me acompanhaste, porque me amas sempre mais.
            Mas eu pergunto-me: Amar-me-ás depois de eu morrer?
            Acompanhas-me com o teu sorriso, com o teu olhar acolhedor, enternecedor, com a tua beleza de mulher imaculada, sempre bela, que nunca foi corrompida pelo mal. Minha. Acompanhas-me com tudo o que és para mim, que vale tanto. Que não tem valor. Vejo a minha vida e toda a minha vontade no teu silêncio, no teu dentro.

Tenho medo que me esqueças. Depois, o vazio…

            Os teus cabelos são o vento que me sussurra ao ouvido palavras de um amor romântico e verdadeiro como sempre foi o nosso.

            Lembras-te, Maria Adelaide, de quando íamos passear para o cais, de mão dada, como dois jovens apaixonados? Lembras-te de como éramos felizes na nossa indiferença perante o mundo que nos era indiferente? Lembras-te, Maria Adelaide, dos tempos que passámos juntos, que duram para sempre, lembras-te?
            Agora é Fevereiro e há todo um mundo lá fora, à nossa espera. Mas eu não tenho forças. E tu sabes o quanto me custa não poder ver o mundo e o sol!
            Fevereiro é um hospital. É um quarto pálido, com cal por todo o lado. Fevereiro é a minha doença sem fim a espalhar-se por cada canto do quarto e deste hospital pálido. E a doença é pegajosa e prende-se a tudo.
            Lembras-te, Maria Adelaide, do dia do nosso casamento? Como ias bela, eras uma manhã de Primavera a florir.

            Diz-me, Maria Adelaide, vais continuar a amar-me como dantes, depois de eu morrer?
           
Lembro-me da nossa viagem a Paris, antes de sermos namorados, Maria Adelaide, e do anel que te dei nos Campos Elísios. O sol brilhava com toda a beleza das coisas mundiais, os castanheiros já estavam em flor. Abril. E disse: Amo-te. Nunca mais me hei-de esquecer dessa nossa viagem a Paris. E perguntei-te se querias ser minha namorada. Beijámo-nos. Tu respondeste, sim, meu tonto. Beijámo-nos. Lembras-te, Maria Adelaide? Nunca me esquecerei.
            Nunca.

Vais continuar a gostar de mim depois de eu morrer?

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