"Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira." Assim começa o grande romance de Tolstoi Anna Karénina.
Será a banalidade um aspecto da felicidade?
E a infelicidade? Ser infeliz é ser genuíno?
Dúvidas que o Gonçalo me lançou logo após me enviar este conto que também faz parte do livro de contos Homens e Demónios.
Eis a primeira parte deste estranho conto de um homem moribundo.
Janeiro. O tempo era frio. O céu não
surgia pintado de azul mar. Não havia segredos ou mistérios no ar. Tudo era
frio e nevoeiro e incerteza. Janeiro.
Tu a meu lado, no jardim, no rio, na
viagem. O frio era a certeza inevitável e dolorosa do meu amor por ti.
Constante. Fiel. A certeza mortal e moribunda de te ter só para mim, em mim,
por ti. Éramos um só, caminhando pelas florestas despidas de Primavera e de
tempos amenos. Vivíamos de uma forma perfeita todas as definições plenas de
amor e felicidade dentro do locus horrendus que outros inventaram.
Depois, a realidade a ser os teus lábios
dizendo o meu nome como um segredo bom e grande e justo. Depois os teus olhos
pedindo os meus olhos e a minha boca como quem pede: água. Depois o teu sorriso
a ser o meu sorriso. O teu palpitar a ser o meu palpitar. O teu corpo a pedir o
meu corpo como uma súplica morna: amor. O teu vaso acolhendo, sem medo ou
receio, a minha vida, o meu futuro que, inconsciente, pedia: vida. És a minha
vida, dizia-te, enquanto os leitores acreditavam, ou não, nos momentos que só
nós vivemos e não vivemos.
O tempo. Sempre.
Escrevo para poder respirar e para não
ter medo da verdade. O que é a verdade? O que é a mentira? Verdades ficcionais?
Mentiras reais? Que interessa tudo isso? Para que serve o mundo e a vida?
Agora
estou nesta cadeira de rodas e tu sorris-me e fazes-me feliz neste momento que
é todo o tempo. E esta cadeira de rodas prende-me o corpo que quer ir beber
desse ar fresco de Janeiro, que sendo doentio, é fresco, porque, para mim, é
a liberdade de uma doença que me aprisiona. E a doença que há em mim é
terminal, dizem os médicos.
Num momento estamos em Janeiro,
saboreando toda uma paisagem. Noutro momento tens uma doença terminal.
Inevitável. Que anuncia o fim de tudo o que foram os teus projectos, de tudo o
que foi a tua vida até agora.
Num
momento, o mundo faz sentido, noutro, não.
Tu, Maria Adelaide, sempre me
acompanhaste, porque me amas sempre mais.
Mas
eu pergunto-me: Amar-me-ás depois de eu morrer?
Acompanhas-me
com o teu sorriso, com o teu olhar acolhedor, enternecedor, com a tua beleza de
mulher imaculada, sempre bela, que nunca foi corrompida pelo mal. Minha.
Acompanhas-me com tudo o que és para mim, que vale tanto. Que não tem valor.
Vejo a minha vida e toda a minha vontade no teu silêncio, no teu dentro.
Tenho medo que me esqueças. Depois, o
vazio…
Os teus cabelos são o vento que me
sussurra ao ouvido palavras de um amor romântico e verdadeiro como sempre foi o
nosso.
Lembras-te,
Maria Adelaide, de quando íamos passear para o cais, de mão dada, como dois
jovens apaixonados? Lembras-te de como éramos felizes na nossa indiferença
perante o mundo que nos era indiferente? Lembras-te, Maria Adelaide, dos tempos
que passámos juntos, que duram para sempre, lembras-te?
Agora é Fevereiro e há todo um mundo lá fora, à
nossa espera. Mas eu não tenho forças. E tu sabes o quanto me custa não poder
ver o mundo e o sol!
Fevereiro
é um hospital. É um quarto pálido, com cal por todo o lado. Fevereiro é a minha
doença sem fim a espalhar-se por cada canto do quarto e deste hospital pálido.
E a doença é pegajosa e prende-se a tudo.
Lembras-te,
Maria Adelaide, do dia do nosso casamento? Como ias bela, eras uma manhã de
Primavera a florir.
Diz-me,
Maria Adelaide, vais continuar a amar-me como dantes, depois de eu morrer?
Lembro-me da nossa viagem a Paris, antes
de sermos namorados, Maria Adelaide, e do anel que te dei nos Campos Elísios. O
sol brilhava com toda a beleza das coisas mundiais, os castanheiros já estavam
em flor. Abril. E disse: Amo-te. Nunca mais me hei-de esquecer dessa nossa
viagem a Paris. E perguntei-te se querias ser minha namorada. Beijámo-nos. Tu
respondeste, sim, meu tonto. Beijámo-nos. Lembras-te, Maria Adelaide? Nunca me
esquecerei.
Nunca.
Vais continuar a gostar de mim depois de
eu morrer?
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