terça-feira, 10 de junho de 2014

É do borogodó: as aranhas

Atravessava a noite húmida envolta por seu longo véu tecido por sete mil aranhas que moravam no seu sótão. Ia pálida, como haveria de ser. Não fosse o desvio, entre as árvores, que fizeram crescer suas narinas extasiadas de cheiro verde oliva que quase se desmanchava no céu da boca de tão doce, e seu véu se rasgou – quase imperceptível fenda.

Foi justamente pelo fio rompido que entrou aquela abelha, vestida de amarelo vivo, brilhante como um sol de meio dia no meio da escuridão. Zunia e dançava, passeava sobre os lábios da mulher e seduzia com formigamentos de veneno. Avançaram sobre a luminosa um exército de aranhas viúvas dizendo que nada deveria romper o véu, nem o silêncio, nem a neblina da noite.

Dentro do ouvido direito da mulher, outras aranhas entoavam um cântico de dor e morte para que ela se sacrificasse até o fim dos tempos (por todos os séculos).

A abelha amarela faiscante de brilho, sem se deixar intimidar pela celebração fúnebre de suas oponentes, andou sobre o peito da mulher, cocegou seus seios e lhe acendeu o mel do ventre.
“Venha comigo”, disse a abelha, “ venha e eu te lambuzarei do teu próprio mel, o mel que nasce do teu ventre”.

Disse isso e voou para fora da fresta, longe das aranhas tecelãs que a provocavam e incitavam disputa.

As aranhas não deixariam desvirtuar o véu tecido ao longo de tantos anos, nem aprovariam que a mulher de mel se lambuzasse e lhe manchasse a barra do vestido aquele viscoso ouro.
Por um instante, o veneno da abelha percorreu o corpo feminino e latejou um movimento crescente entre as virilhas. Quase desfalecia a pobre mulher.

Atirou-se contra os troncos e revirou os olhos percorrendo cometas.
Entre as árvores a mulher se apavorou e aos soluços implorou que lhe deixassem em paz, aranhas e abelha.

O véu já ia roto, a noite escura já não se demorava e o dia não tardaria chegar.

Penélope Martins

3 comentários:

  1. Não sei como a Ana Almeida, que tem tanta sensibilidade, publica este tipo de textos

    ResponderEliminar
  2. Permita-me, caro/a anónimo/a, dizer que não entendo o que quer dizer com "este tipo de textos". De qualquer modo, eu não 'publico' nada. Apenas trato da partilha dos textos da nossa colaboradora brasileira Penélope Martins, que assina às terças-feiras a rubrica É do borogodó, tal como vem assinado no texto.
    Quanto ao gosto pelo estilo literário, deixo para quem lê. Obrigada.

    ResponderEliminar
  3. fiquei curiosa a saber o que tem no tipo de texto que fere a sensibilidade humana. de qualquer jeito, é sempre bom saber que fervemos algo com palavras, seja para levar ternura, seja para levar a loucura. abraço ao anónimo. beijinhos aos amigos de partilha.

    ResponderEliminar