Com todo o medo que tenho, tijolo a tijolo, pedaços de medo sólidos e
cúbicos, como se a brincar com legos, um brincar cantar a tentar espantar o medo, construí um elefante.
Tenho medo suficiente para construir um elefante, o maior mamífero
terrestre, largo, lento, pesado, ambulante, orelhudo e trombudo.
Um elefante não mete muito medo.
Um medo que fermentou, São Vicente
te acrescente, São Mamede te levede, São João te faça pão, um medo pão que se alimenta a si próprio, pão-pavor alimento malsão dos
meus dias.
Um medo que se fez e cresceu, inchou, levedou, saiu do meu corpo, do
meu ventre, abalou, terraplanou, queimou a terra, começou ervilha, cordão
umbilical, península, fez-se uma ilha, lembra um navio, uma embarcação que tudo
abarca, o mar grande tão pequeno a segurá-lo delicadamente entre os dedos de
água.
Cuidado não caia o menino.
O meu medo menino, como os meninos gosta de brincar, de intimidar.
O meu medo navio a deslizar, a errar pelo meu corpo, tudo errado, a
obscurecer o azul do mar, o azul do céu, o azul dos olhos meus.
Um azul-escuro-quase-negro, um azul-cego.
O medo na ponta dos meus dedos, os meus dedos a evitar o teu corpo.
O meu medo elefante, ambulante, segue indistinguível na manada, larga,
lenta, pesada, segue indistinguível entre todos os mamíferos, apesar de vazio
ou cheio de medo, não a mesma carne, não o mesmo tutano no osso, apenas a mesma
pele, parece a mesma pele, porque a mesma espessura, a mesma resistência ou a
mesma lama a camuflar imperfeições e defeitos.
Perfeito é o amor mesmo quando feito de defeitos.
Só o amor afoga o medo e, em passo lento, o meu medo vai,
estranhamente sem medo.
Vai e deixa-me só, estranhamente sem medo.
Aliviada e leve.
Capaz de voar.
Capaz de tudo.
É tão difícil perceber o perímetro, o peso, o volume, a forma, a
densidade, a espessura, a consistência, o recheio, o cheiro, perceber o que é
tudo.
O azul-cego, cegas as pontas dos meus dedos.
Enquanto nada é nada.
Nada é simples e leve, eu, aliviada e leve.
Uma leveza de pássaro, não sei porquê cegonha.
Sei porquê.
Porque um pássaro desengonçado, porque uma evidente tendência para
fazer o ninho em chaminés, em torres de igreja, em postes de alta tensão, em
desafio.
O mundo sem chão, a casa sem cão.
Dizem que quem tem medo compra um cão.
Eu tive um cão, morreu velho e cego, o desgosto foi tão grande que o
medo encolheu, ficou pequeno, voltou a medrar, a amedrontar, o medo dentro de
casa, a circular sem trela, dentro do corpo, habitante, inquilino, gatuno, a
casa em risco, o corpo em risco, o coração o isco, e os pulmões a paz, quando
me deixam respirar.
A casa suspensa, lembra um navio, um elefante nas nuvens.
A casa pendente do céu, das manhãs de vento, das tardes de chuva.
E nem ventos, nem chuvas, o céu sempre azul.
Azul-claro ou azul-escuro-quase-negro.
É sempre Verão, o Verão é por definição eterno, e as cegonhas são
pássaros de uma só estação.
Será possível migrar do medo?
Será privilégio de pássaro?
Será?
E se eu abrir os braços e saltar?
Será?
Raquel Serejo Martins
Sem comentários:
Enviar um comentário