quinta-feira, 19 de junho de 2014

A sinfonia do amor de Emílio Miranda

SINFONIA DO AMOR

Ajoelhou-se, agarrou um punhado de terra e cheirou-a. Cheirava a tempo e a saudade. Fechou os olhos. E as lembranças vieram. Com a voz do vento. Num sussurro...
A terra ainda tinha o cheiro dela. O cheiro macio de mulher...
A mão fechada guardou aquela lembrança, junto ao peito.
Até que o vento lhe disse: Levanta-te. E ele largou-a.
Em volta havia árvores velhas, giestas e rochas. E o vento sussurrava: Ah, como tudo é efémero! Porque pensas no que passou?! Olha em torno de ti e verás mais do que saudade. Mais do que já foi...
Pássaros chilreavam, e para lá das rochas havia o verde dos campos. Um verde macio e luminoso.
O ar cheirava a rosas. Mais do que o cheiro dela. Muito mais.

O alpendre dava para os montes, lá longe, onde o sol descia, cansado. Sentado na velha cadeira de baloiço, ele relembrava outros pôr-do-sol de dias longínquos. Tantos que já não existia nenhum que pudesse ser novidade. Como aquele, rubro, presenciara centenas... E no entanto... era sempre novo... era sempre diferente.
Aquele lugar era belo.
Sempre fora.

Apenas os pomares e as vinhas tinham sido invadidos pelo mato e jaziam abandonados. Mas até esse abandono estava para além da simples ideia de ruína, de caos. Era como um retorno ao primordial, ao início. E essa ideia ajudava a superar, aquela imediata, de tristeza, de desolação. (Bandos de pássaros enxameavam o arvoredo, em volta, e os seus cantos erguiam-se no entardecer...)
Afinal tudo era, também, imediato.
Devia sabê-lo.

Acendeu o cachimbo e aspirou o fumo, profundamente. A noite caíra, e havia já nuvens de mosquitos pululando a lâmpada do alpendre. Expulsou o fumo e cheirou a noite. Cheirava a tempo, feito de nostalgia. Cheirava a tílias, eucaliptos e ao verde dos prados. Cheirava aos mil cheiros de flores silvestres.
Cheirava (também) a lembranças boas. A brincadeiras e a risos. Que mal havia na saudade? Não era certamente um velho caquéctico vivendo do mofo das lembranças. Era apenas um homem que guardava memórias. Um homem que viajava no tempo, porque o tempo estava lá, sempre à sua espera.
Ah, havia também o cheiro dela, misturado com todos os outros. Aquele cheiro bravio de mulher...
Hum... E como era bom!

O cachimbo quedou-se, suspenso, entre ele e a noite. E para lá das lembranças, um sorriso aceso, um corpo jovem chamando-o: a silhueta em fogo, os bicos erectos dos seios, as ancas rijas e jovens recortavam-se contra o luar, sobre a colina.
O cheiro dela ainda lá estava...
Amou-a como nunca tinha amado ninguém.

O amor mata… O amor é o maior assassino porque mata quem verdadeiramente ama… Mata de prazer,
Mata tão ardentemente
Que a morte se deseja,
Quase tanto como a vida
Como pode ser?

Lembra-se de a ter despido entre as videiras, ao luar, ou então sobre medas de feno cortado e empilhado ao sol, com o cheiro da terra e do mar misturados
E o corpo dela
Tinha o sabor do vento
O gosto quente e ardente de um
Pensamento
Veloz
Um cavalo de força
Irrompendo da terra
Tão ávido de espaço
Tão ávido de tempo
Que o tempo
Se reduzia
A um momento apenas
Tão pequeno
Mas tão intenso
Que não havia tempo ou pensamento
Que coubessem nele
E contudo
Ele era todos os momentos e todos
Os pensamentos

Há dias que se senta sob o alpendre, depois de a noite chegar, e aguarda
O momento
Em que o pensamento
Se fará sentimento
O momento em que o tempo
O deixará sentir
Uma vez mais…

Conhece todas as estrelas e no entanto nunca lhe soube os nomes, mas conhece-as porque as olhou mais vezes do que qualquer outra coisa de que se lembre, do que o seu próprio rosto que às vezes barbeia, outras não.
Agora, uma vez mais procura-as no negro céu, e para cada uma delas sorri, lembrando os momentos em que, ambos, saciados as olhavam inventando o que não sabiam.
- Sabes – dissera-lhe ela uma vez – se pudesse gostaria de ser cosmonauta. Um dia.
O sorriso dela, incendeia a noite, porque todos os sonhos têm essa força e essa vontade e esse poder.
De incendiar a noite.
- Para quê? – Perguntara ele, como sempre adivinhando a resposta. Mas a pergunta ajudava-o a pensar. A sentir o sonho.
- Ora, conheces mais alguém que tenha a sorte de poder tocar as estrelas?
- Conheço.
- Quem?
- Nós!
O sorriso dela incendiara ainda mais a noite, pondo em risco o fardo de palha seca, onde os corpos nus se estendiam, como se esperassem que o luar os guiasse, como em tempos guiara os audazes marinheiros por um mar desconhecido
Mas a palha não ardeu
Pois se já não tinha ardido
Sob o calor dos seus corpos
Nenhum incêndio
Jamais
A queimaria!

- Por mim – ouviu-se ele a dizer – dava tudo para poder parar o tempo. Neste preciso momento. Mesmo que o meu corpo esteja fora do teu e a tua voz soe a mais de dois palmos da minha orelha, porque sei, agora, que estamos juntos e somos felizes.
- Estaremos sempre juntos…
- Mas talvez nem sempre sejamos felizes…
A felicidade é como um fogo
Que por maior que seja
Acaba por se extinguir
Um dia – pensa.
A noite tem o cheiro dela. Tem o cheiro a rosas e a chuva, um aroma de terra molhada que lhe traz à lembrança o orvalho de suor que lhe cobria a pele depois
Depois…
Percorria-lhe a pele com a língua, as curvas e os recantos, todos e tão poucos, enquanto ela gargalhava, enquanto os risos dela o faziam arder mais e mais
O sabor de uma mulher
O sabor da mulher que amamos
É mais doce do que
Mel
Mais, muito mais…

A saudade é como um sonho em pleno pesadelo,
Angustia-nos tanto, que sonhamos todos os pesadelos
Ansiosos por jamais despertar.
A saudade, sentimento controverso e indesejado,
Por nos lembrar o que desejamos
Cravando-nos na alma a dor do que não se tem… e se deseja,
Espécie de Sinfonia do Amor

Que soa indefinidamente…

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