segunda-feira, 12 de maio de 2014

TRIGONOMETRIA






Quando dormíamos juntos, dormimos juntos quatro vezes, quase os dedos de uma mão, eu fazia exercícios de trigonometria na minha cabeça.
Eu a estudar as relações entre os comprimentos de dois lados de um triângulo rectângulo, seno, cosseno, tangente, co-tangente, secante, cateto oposto, hipotenusa.
Eu indiferente aos triângulos equiláteros, aos isósceles, aos escalenos, ao seu corpo ao meu lado a dormir em sossego, ao seu sono provavelmente sem sonhos.
Há matemáticos que defendem que a trigonometria foi inventada para cálculo das horas nos relógios de sol, e as horas da noite a passar sem eu as conseguir contar.
Eu tinha 16 anos e era a melhor aluna da turma a matemática.
Ele também tinha 16 anos e olhos verdes e uma guitarra e escrevia canções.
Canções melancólicas que contavam histórias estranhas e tristes, em que rimava pulmões com tacões, com vulcões, com trovões, com traições, com alemões.
Não era muito inteligente, muito menos aspirante a Camões!
Canções que me faziam rir.
Foi o primeiro rapaz (capaz!), a fazer-me rir.
Um rir de riso irreprimível.
Depois o riso reprimido a beijos.
Como se eu Ophélia Queiroz no n.º 42 da Rua da Assunção, quando pela primeira vez viu um senhor todo vestido de preto, com um chapéu de aba revirada e debruada, óculos e laço ao pescoço, quando pela primeira vez viu Pessoa e teve vontade de rir, e não riu, o riso reprimido, não a beijos, que Pessoa de luto e Ophélia em situação protocolar porque no local em companhia de seu pai para uma entrevista de emprego.
Uma moderníssima Ophélia, num tempo em que farmácia se escrevia com ph, com vontade de trabalhar, ter colegas e horários a cumprir, talvez salário no fim do mês, de ser diferente. Era diferente.
Cuidado com as raparigas que lêem, e mais cuidado ainda se souberem fazer contas.
Uma Ophélia que não riu, talvez sorriu sem saber ainda que ia ser amor.
Para mais um amor correspondido, porque depois o poeta doido e tonto, a traduzir, a atestar, a confirmar, talvez papel comercial, vinte e cinco linhas e o devido selo ou carimbo:
Fiquei louco, fiquei tonto…
Meus beijos foram sem conto,
Apertei-a contra mim,
Aconcheguei-a em meus braços,
Embriaguei-me de abraços…
Fiquei louco e foi assim…
Um amor com fraco fim, Ophélia casou com outro, Pessoa morreu cedo demais.
No meu caso não foi amor, foi riso apenas, reprimido a beijos.
Foi o primeiro rapaz, capaz, um valente ou uma valentia (não sei se são a mesma coisa), de fazer-me rir, num tempo em que eu coleccionava selos usados, os de pássaros e de barcos a vapor os meus preferidos, e nuvens por usar, palpáveis e resistentes, imprescindíveis para andar com a cabeça nas nuvens, e era a melhor aluna da turma a matemática e a todas as disciplinas.
Era extremamente disciplinada e o riso era coisa indisciplinada.
Foi o primeiro da minha colecção.
Uma colecção pequena.
Casei com a quarta boca que beijei.
Uma boca perfeita para sorrisos tristes e agridoce no sabor, lia poesia, parecia um sonhador, parecia amor.
Pareceu-me bem.
Hoje, quando dormimos juntos, para alegria dos meus pés sempre frios, já não faço exercícios de trigonometria, já esqueci regras e fórmulas, os pensamentos mais comezinhos, outras regras, as horas no despertador, os relatórios, a correspondência, os guarda-chuvas, as gabardinas, uma pilha de meias para dobrar, o que fazer para o jantar.
Deixei cação a descongelar.
E faz tanto tempo que ninguém me canta uma canção, desafina ao ouvido, rima cação com fogão, com balão, com dragão, faz tanto tempo que a cantar ninguém me tira para dançar, uma valsa quase de Viena, três passos em volta, em volta, em volta.
A máquina de lavar às voltas, a roupa para estender, será que amanhã vai chover, e não me posso esquecer de, depois do trabalho, passar no mercado, será que o senhor António já voltou do hospital, o diagnóstico tardio de uma apendicite aguda quase lhe custou a vida, a vida custa, tem preço, para comprar um molho de salsa, outro de coentros, nenhum de alecrim que não tenham por quem chorar meus olhos, na tentativa de dar cor e aroma à sopa em que afogo, colher a colher, os dias da minha vida.

2 comentários:

  1. A nostalgia da juventude que assalta momentos inertes do presente. Gostei muito do estilo!

    Bárbara
    http://bloguinhasparadise.blogspot.pt/

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