quarta-feira, 7 de maio de 2014

Gonçalo Viana de Sousa: O Flâneur das Sensações

A Arte é tudo. E tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo. (Eça de Queirós)

Eis mais um conto de Gonçalo Viana de Sousa. Cerebral, cerebral, cerebral!


Foi a primeira vez que morri.
Tinha acordado de um sonho estranho, negro e azul: meditabundo. Chovera toda a noite, pois o jardim do hospital soltava um cheiro fresco e húmido a terra molhada, a jasmim, trevo e rosmaninho. (Talvez não exista hospital nenhum com jardim e com estes odores, mas, desculpa leitor, aqui precisamos da chuva e dos perfumes. Desculpa-nos.)
A enfermeira entrou no quarto com uma pequena refeição e um copo com umas quantas pílulas coloridas, para os nervos e para a cabeça.
Bom dia, senhor Sousa, diz a pobre enfermeira mais doente e maluca que eu. (Sim, porque eu não estou doente nem algo do género, simplesmente consigo ver personagens de livros a vaguear pelos jardins e pelas avenidas. E por conta disso, chamam-me maluco! Feliz: é a definição apropriada. Mas será a felicidade loucura? Será o dia-a-dia de horas sem sol e luz a realidade de toda a gente, transeuntes esquecidos do coração? Não sei, nem interessa. Para quê?)
A enfermeira espera até que eu tome a refeição e as pílulas. (Para não acontecer o que aconteceu a Julieta, e essa era bem mais louca que eu. Amor.)
Bernardo Soares parece estar sentado num banco do jardim, enquanto ao seu lado, um leitor é assassinado por uma personagem do romance que está ler. Cortázar?
Os pássaros voam alto e coloridos. Cézanne pinta e Monet chora. E tudo isto acontece no jardim daquele hospital. Tomei as pílulas. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis. A enfermeira sai. Até mais logo, senhor Sousa. Até, respondo-lhe.
As janelas do quarto têm grades, contudo, a realidade continua igual, impávida, inconsciente, indiferente. À cabeceira, um romance grosso. Talvez Os Trabalhadores do Mar, não interessa. No meio do livro, uma pílula negra. Engulo a pílula negra, fecho os olhos e estou no jardim. Caminho ao lado de Bernardo Soares que sorri muito, muito, muito. Do céu vem um ruído estranho. Qualquer coisa a tocar. Parece um despertador. Despertador. Despertador. DespertaDor. Abro os olhos. Chove torrencialmente. Levanto-me e enfrento a realidade. Hoje vou enterrar a minha mãe.


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