Disse Théophile Gautier no prefácio ao seu romance intitulado "Mademoiselle Maupassin": "Só é realmente Belo aquilo que não serve para nada."
Para que servem as mentiras e as palavras, então?
No vosso regaço, mais um conto de Gonçalo, o Flâneur das sensações cerebrais!
Naquela
viagem
Não tenho a certeza de nada. Ou de tudo? Não sei.
Mas
aquele velho, sentado num dos bancos da frente, com a boina tapando os olhos
que dormem, ou fogem deste mundo, cruzou simpatia com as minhas mãos. Não com a
vida. Isso de cruzar vidas é coisa de gente ilustre, de gente com fato e
gravata e títulos. E medos? Um velho que parece dormitar, bonacheirão. Velho.
Como todos esperamos ser, um dia. Talvez.
Ao
seu lado, uma velhinha lê um livro de bolso. Cheirava a Camilo Castelo Branco,
a paixões ardentes e a tempos outros, em que as florestas eram Românticas e os
heróis genuínos. Hoje temos os livros. Antes tínhamos o mundo.
Não
será isto o processo de sermos? Uma tentativa de vivermos para lá das palavras
e textos que somos? Não será a vida, a tentativa, a oportunidade última de
fugirmos da tentação de sermos só papel e tinta?
É
um autocarro vermelho, cor de viagem morna.
Ao
meu lado, um lugar vazio, como sempre. O silêncio acompanhando a balada que é o
movimento constante, repetido, quase enjoativo e delicioso desta viagem.
Mas
nesta viagem, que será aquela viagem, quando isto for um texto e tudo não
passar de uma mentira, interessa aquele velho do banco da frente, da boina,
aquele que tem a seu lado uma mulher, não interessa sabermos nada desta mulher,
que lê um livro. Começamos porque o livro
chamou por nós ou porque a simpatia é a mentira que nos traz aqui? Não fingimos
nem mentimos. Escrevemos realidade. Traduzimos aquilo que vemos, diria alguém
de barba naquele século que foi o do romance. E hoje? Há espaço para romances? Teremos
tempo para grandes narrativas, para fantasia? Estaremos, nós, seguros, com esta
realidade? Precisamos da mentira para continuarmos, daí a Arte. Bem-
aventurados os ricos de espírito, pois deles é o Reino da Terra. Se mentirdes
como todos até agora mentiram sereis grandes e nada será esquecido. O perdão
vem com a glória das mentiras.
E
aquele velho? E aquela velha? Que é feito deles? Continuam a sua viagem, para
alguma cidade grande onde faça sentido a palavra: família; para um lugar outro
que não este, que é inconstante.
Naquela
viagem, olho pela janela e vejo as estradas e os montes que não me deixam ver
outras coisas que ficariam tão melhores aqui: uma floresta, um bosque, talvez
um castelo, ou a praia, o mar. Nada disso seria verdade. Se escrevo estas
pequenas palavras é porque não quero mentir mais do que necessário. Deus já
mentiu de mais para todos nós, quando nos disse para amarmos o outro como a nós
mesmos! Se amássemos os outros como a nós mesmos, seríamos invejosos, mais
invejosos do que somos.
Assim,
volto a olhar para o velhinho da frente, já acordado, sem boina a tapar o
rosto, merendando uma sandes de qualquer coisa, bebendo por uma garrafa uma
outra coisa qualquer. Não interessa. Nada disso interessa. Interessa, sim,
fazê-lo existir. Existir muito, com muita força. Luz.
Quem és tu?
Fecho
os olhos e tento sorrir, acreditando que o mundo poderia ser isto ou aquilo.
Tantos sistemas filosóficos e religiões. Tantas antifilosofias e anti
metafísicas. Para quê? Tudo é realidade em potência, como nenhum poeta ou
mentiroso alguma vez pensou. Lembro-me de outros que escreveram e mentiram e
sorrio. Sim, agora esboço um sorriso largo, mentiroso, mas só para mim. Ninguém
precisa de saber deste sorriso. A solidão e o silêncio estão no banco ao lado
do meu.
O
velho acaba a sua merenda. A velha sorri para o velho, limpa-lhe a boca com um
lenço de pano e beija-o nos lábios. Um beijo de namorados com promessas de
viagens e palavras que dizem: Amo-te! Vamos ser felizes para sempre!
Esperei
até ao momento daquele beijo para te dizer que tudo isto não passa de uma
história inventada, pois no quarto onde estou não há janelas nem céu. O
batimento cardíaco é inconstante.
A
mentira tem destas maravilhas.
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