A queda
Os amigos rodeiam-se da calma necessária
em que eu somente me deixo transparecer. Dentro
de cada um existe um pedaço de vidro e de papel, como
se me despedaçasse quando me atiram
pedras.
O suor surge quando menos se quer que
se erga a cidade. Hoje é difícil criarmos-nos,
porque todos se deixam diluir como as
músicas como as palavras ao descerem
a pele em direcção ao rosto.
Deixa-se surgir a verdade. Deixa-se transparecer
pelo corpo enquanto se foge do que
não sei. Enquanto. Durante a longa queda -
que se esvanece nos cabelos - existe um pequeno
lugar - junto aos dedos, não muito perto da mão -
onde todos os poemas nascem e morrem.
Onde todas as crianças crescem ou
desaparecem.
Como estas paredes que se desenham, com sorrisos
em lugar de quadros, com olhares despertos e interessados
no cansaço das minhas pálpebras.
Deixa-se correr a tinta pelos quadris,
ao molhar-se a pele chega o momento certo:
onde a bala do tempo se contorce.
Nem uma silva de prata a zunir pelo
quarteirão, um corte no peito, uma tentativa
de roubar de mim aquilo que nem eu tenho
como se fossem palavras ou gestos que
se esquecem quando o quarto fica escuro e só se
vêem diamantes e frases semi-apagadas.
Perco pela rua a roupa porque assim
me possuo. Porque assim consigo ver a tua face
onde ela já não existe.
Hoje está difícil andar. Está calor.
No adro da igreja ouvem-se pardais e pombos por
onde não quero passar.
O único caminho é por debaixo do peso
da explicação. Por debaixo de mim erguem-se vozes
que se assemelham a um poço de sangue
a um sorriso sem intenção.
É por isso que, quando nos reflectem
os braços do rio, nos esquecemos de dormir
enquanto implodimos dentro de alguém
como um poema.
Deixamo-los partir para que nada reste
deles - os amigos - e aí perguntam-nos
como nos sentimos e respondemos em silêncio
porque nada mais resta.
Sérgio Xarepe
*poema sugerido por Soraya Semenzato
*poema sugerido por Soraya Semenzato
*pintura de Jose Royo
Sem comentários:
Enviar um comentário