Seremos, nós, capazes de ser mais humanos por meio da arte?
Fica a reflexão.
Deixo, agora, no vosso regaço, mais um conto de Gonçalo Viana de Sousa, da sua obra Homens e Demónios.
Naquela casa
Naquela
casa, ali, ao pé do rio, foi onde tudo começou. A música saltava por entre os
arbustos que diziam baixinho: jardim. O rio era prateado nas noites de luar e a
luz que vinha daquela casa… oh! , a luz que vinha daquela casa! O piano era
mais que um instrumento. O piano era luz que aquecia e dava vida. Era uma luz
acolhedora e terna, uma luz de lareira e de palavras de família e de segurança.
Naquela
casa, ao pé do rio, ali, será o fim desta história. O piano e o cego de cabelos
loiros eram um só. Era um piano de cabelos loiros. Era uma melodia cega e
portadora de novos horizontes. O copo de vinho sobre o piano. A pauta a dizer
Beethoven. Os dedos cegos do pianista a dizerem palavras de amor ao piano de
cabelos loiros. Antes não era assim. O piano era um piano de família. O cego
era um homem de amor. Quando, pela primeira vez, o piano ocupou o seu lugar
naquela casa ao pé do rio. Quando, naquela casa, ali, ao pé do rio, o primeiro
olhar, o primeiro beijo, um outro olhar. A primeira vez que o homem fez amor
com aquela que seria a sua amada. Amo-te.
Laura,
a portadora da chama do amor do homem que ainda não era cego. Chegou, foi vista
e mudou tudo. Para sempre. Era como ele gostava de lhe dizer depois de um
nocturno em noites de Outubro, enquanto o rio seguia o seu caminho,
inevitavelmente impassível.
Certa
noite, Laura, a prima donna, conseguiu avançar. E avançou. Saiu das pautas dos
poetas, músicos de silêncios. Saiu das folhas de séculos de códigos e de regras
e leis. Argh! Tanta Literatura e tanta explicação que é dada por causa de uns
dentes brancos, uma tez fina, um regaço doce! Laura rasgou tudo. Tudo. O
pianista tocando apaixonadamente, a noite a ser silêncio e: calma. Laura feita
de papel e de séculos de mentes tão complexas a rastejar até à cozinha. Não
comeu nenhuma maçã vermelha. Nunca gostou de maçãs. Não sai à mãe. Laura avança
pela cozinha. O pianista começa a falar com o piano numa voz alegre e
primaveril, enquanto a noite era Outubro, ou Novembro? E chovia? Ah! Locus
amoenus e locus horrendus! As voltas que tu dás entre mãos trémulas. Se ao
menos houvesse absinto e os tempos fossem os de oitocentos… Se a noite era
calma, havia luar e algumas estrelas apareciam com a vergonha estúpida de serem
estrelas no céu. Laura avança com um copo de balão, um copo de vinho tinto,
vermelho, sedoso, pastoso. Vermelho. Avança com o copo em direcção ao pianista
que falava com o piano de palavras de infância e carinho. Isto porque não
chovia. Isto porque havia lua e estrelas. Para quê? O copo de vinho tinto tinha
uma cor vermelha. Vermelho de amor? Talvez. Mas foi a última cor que o pianista
viu, enquanto Laura, a bela e divina Laura, perfurava os olhos deste homem
apaixonado – vermelho de amor - e louco
até o som ser surdo , até o piano sentir a vergonha da Literatura sobre uma
pauta de poesia. Petrarca, Camões, Shakespeare, Baudelaire? Porquê? Para quê? O
pianista ficou cego, o tempo parecia ser ameno e tudo indicava um clima de amor
e paixão. A culpa é do Romantismo e dos homens e das mulheres e da arte e da
Arte. Enquanto fizermos associações entre noite, escuridão, luz-trevas, calma-tempestade,
iremos navegar pelas palavras à procura de sentidos que não existem! Tudo é o
que é e será o que será. Mas se escrevo isto lembro-me de Alberto Caeiro e caio
na lama que sempre tentei evitar. Ah! Memória genética e cultural! Ah! Século
de todas as tecnologias e facilidades! O que és capaz de fazer com uma mão
cheia de nomes e lugares comuns!
Mas
Laura esmagou por completo os olhos do pianista. Isso é o que interessa. Ela
sorridente e finalmente sentindo-se Senhora. Sentindo-se Nossa Senhora das
coisas Impossíveis, porque, enquanto houver mundo, as personagens serão só
papel. Enquanto houver mundo, os pianos não terão cabelos loiros. Enquanto
houver mundo, Laura ficará no papel e nos livros, para sempre, ou até ao dia em
que alguém se lembre e se aperceba que as personagens não são de ninguém, são
livres como as próprias palavras ordenadas e alfabetizadas. Somos escravos
cerebrais da ordem e do medo. Mas o pianista, ao sentir uma dor aguda e grande
grande grande no lugar dos olhos não grita, não oferece resistência, não tenta
defender-se. O pianista, brotando sangue e lágrimas pelos olhos, não pede
perdão a ninguém pelo que lhe fizeram. Não precisamos de cruzes ou de gente
rezando por nós ladainhas de mistérios e aparições. O pianista, esse, continua
a acariciar o seu piano, sorri e diz: és tu, minha Laura. Vem, eu Amo-te.
Imagem tirada daqui: http://www.thelemming.com/lemming/dissertation-web/images/flaneur.jpg
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