segunda-feira, 14 de abril de 2014

A propósito de TEORIA DOS LIMITES


Maria Manuel Viana em entrevista



“… e a alegoria consistia em que, por mais que o protagonista tentasse atingir a perfeição, esta era-lhe sempre negada, porque a procura (a demanda, a palavra do Pai) devia ser infinita, logo nunca poderia ser alcançada.”
in Teoria dos Limites, pág. 19

Raquel Serejo Martins: A perfeição é inatingível, está-nos negada, somos imperfeitos e incompletos? Temos de ser perfeitos?
Maria Manuel Viana: esta frase é dita por uma personagem, Mariana, que reinterpreta, à sua maneira, uma explicação que o pai, um escritor célebre, dá da cosmogonia de Leibniz: para o filósofo alemão, a perfeição era Deus; para Mariana e as pessoas (família, admiradores, leitores) o Escritor era uma espécie de deus. Não é revelado o tipo de perfeição exigido na tal alegoria de que falava o Escritor, nem a palavra perfeição tem o mesmo sentido no século XVII e nos dias de hoje. Não ocorreria a ninguém, suponho, declarar como objectivo de vida a obtenção da perfeição e/ou da completude, a não ser, eventualmente, em campos específicos: a música, a pintura, a literatura. Mas falamos de dimensões diferentes: a primeira, a de Leibniz, é uma abstracção, a segunda uma construção.

“A questão dos nomes sempre fora central na vida delas, pensa, não só os da família como todos os outros, classificavam as pessoas assim, os que eram dos nossos e os com nomes esquisitos, o mundo dividia-se entre os nomes-como-deve-ser e os ditos com desprezo, como se a própria palavra metesse nojo,…”
in Teoria dos Limites, pág. 24

RSM: O filósofo espanhol José Ortega y Gasset, em Meditaciones del Quijote, escreveu Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo. O nosso nome é a nossa condição? Será que nos conseguimos reinventar? Ou não passamos de pseudónimos de nós mesmos?
MMV: Quando Ortega y Gasset diz “eu sou eu e a minha circunstância”, fá-lo indicando que ninguém é um indivíduo isolado, independente do que à sua volta se passa. No fundo, é uma soma: eu+circunstância. Se, por hipótese, alguém conseguisse viver em duas épocas distintas, distintos seriam também o comportamento e a atitude. Se um de nós tivesse sido judeu ou alemão nazi ou pró durante a guerra, ou bósnio, sérvio ou croata durante a guerra dos Balcãs, independentemente de nos chamarmos à mesma Raquel ou Maria Manuel, teríamos sido pessoas diferentes.
Agora, aqui, neste caso específico da família da Teoria dos limites, os nomes são importantes porque identificam quem pertence a uma casta, a uma classe social favorecida, à aristocracia ou à alta burguesia: aí, as relações tendem a ser endémicas e a manutenção dos privilégios passa por se defenderem uns aos outros, em circuito fechado, rejeitando tudo o que vem de fora, porque se trata da sobrevivência enquanto clã, casta, classe.

“…dizia, a beleza é um verniz, estala, o importante não se vê, o mais profundo, o telúrico, que era uma das palavras de que ele mais gostava,…”
in Teoria dos Limites, pág. 31

RSM: Maria Manuel, a beleza é um verniz?
MMV: Não. A beleza, enquanto abstracção, não sei bem o que seja, depende de factores tão diferentes como a crença numa religião, (por exemplo, na Idade Média, a beleza é essencialmente uma criação divina e Deus é a beleza inefável que se manifesta no mundo sensível) ou a subjectividade (para Kant, traduz-se num juízo que exprime um sentimento de prazer). O que há é manifestações do belo: uma partita de Bach, um verso de Shakespeare, de Camões, de Célan, a carnation lily lily rose do John Singer Sargent, o binómio de Newton e a Vénus de Milo, Veneza, o mar da Costa Brava, a Maria Bethânia a cantar Pessoa, o In the mood for love do Wong Kar-wai, O Blade Runner do Ridley Scott, a voz da Emmanuelle Riva ou do Jeremy Irons,  etc etc.
Mais uma vez, a frase “a beleza é um verniz” só se compreende cabalmente ao sabermos que é enunciada por um militante comunista que tenta desvalorizar a namorada, Sofia, uma modelo lindíssima; ele rejeita tudo o que tem a ver com ela, a família, o dinheiro e critica-a por “se vender” em passagens de modelo. Tentei, obviamente, ser irónica, remetendo para o ideal de mulher comunista: operária ou camponesa, dessexualizada, irmã de armas e combate dos camaradas-homens.

RSM: Quais as palavras de que mais gosta?
MMV: Ah, tão difícil, a pergunta! Há palavras fascinantes e palavras horríveis. Sou muito sensível ao som de algumas palavras: blusa, por exemplo, odeio. Gosto muito de absoluto, profundo, memória, silêncio, subitamente, sim, não, talvez, ana, rasura. Detesto vogais abertas, evito sempre que posso. Por mim, falava e escrevia sempre com sons fechados.

“Não sabe se é dessa Sofia que tem saudades ou desse tempo, claro. Ninguém sabe nunca.”
in Teoria dos Limites, pág. 32

RSM: Tem saudades de outro tempo, de si? É dada a nostalgias?
MMV: Não, não sou. Ou não sou demasiado. Penso muito pouco no passado, em termos pessoais. Posso sentir saudades mas são efémeras e têm a ver com momentos específicos em que fui profundamente feliz: o começo de uma paixão, uma vitória política, a primeira palavra dos meus filhos, uma tarde numa esplanada com amigos a beber Martini.

“Não é dada a nostalgias, a infância é um atropelo de memórias com regras e deveres, uma espera para ter lugar à mesa dos crescidos, para lhe ser permitido sair com os amigos do irmão e da prima, para poder falar sem ser para responder a perguntas de circunstância, para caminhar sem ter de pôr um livro na cabeça a ver se não cai ou um debaixo de cada braço para saber se já sabe comer correctamente,…”
in Teoria dos Limites, pág. 39

RSM: A infância é o tempo da espera ou o tempo felicidade feito das coisas simples?
MMV: Tenho verificado, ao longo do tempo, que as pessoas tendem a mitificar a infância: não é raro ouvir alguém dizer que teve uma infância muito feliz. Exceptuando os casos de abusos (e conheço muitos, demasiados), há a ideia de um tempo passado que foi bom, em que éramos amados incondicionalmente. Não sou dada a saudosismos, como já disse, e, se quiser situar a altura da minha vida em que fui mais feliz não escolho a infância nem a adolescência. Aprendi a ser feliz já adulta.

“Pergunta-lhe porque escolheu para título Teoria dos limites, uma vez que teoria de limites é uma expressão de d’Alembert e não de Leibniz…”
in Teoria dos Limites, pág. 81

RSM: De certa forma repito a pergunta, porque é que escolheu o título Teoria do Limites?
MMV: Não há nenhum mistério nem nenhuma sabedoria da minha parte. Foi ao ler um Magazine Littéraire dedicado a Leibniz, antes mesmo de pensar escrever o livro a partir das ideias e da sua concepção do mundo. Mas foi um acaso, um acaso feliz: nunca fui boa aluna a Filosofia e, em princípio, era improvável que me detivesse a ler o dossier consagrado a Leibniz, de quem sabia muito pouco, excepto a aversão que causara em Voltaire (este último, sim, estudei-o). Folheei o dossier, mais ou menos distraída, detendo-me apenas nas caixas e nos sublinhados e, aí, li a expressão Teoria dos limites, que achei lindíssima. Voltei ao princípio da revista e li tudo, cuidadosamente: foi o início de uma pesquisa e de um estudo que me mergulhariam, durante três anos, no universo de Leibniz. Se alguém me tivesse dito, há uns anos, que eu iria ler Leibniz, ter-me-ia rido, por ser absolutamente improvável.

“…palavras que lhe pareciam de súbito demasiado banais, a perderem a força com que as pensara, palavras todas só com valor de uso, feias, utilitárias, instrumentais?”
in Teoria dos Limites, pág. 82

RSM: Só temos as palavras? O que nos resta quando as palavras não mais do que banais?
MMV: No princípio era o verbo, digo eu que sou ateia. No entanto, e essa é uma das teses do livro, a língua universal, mecanismo fundamental para a compreensão de todos os povos e, por isso, instrumento decisivo para a paz, seria composta por letras, notas de música, símbolos algébricos, símbolos químicos, gráficos, ideogramas, desenhos, figuras, cores, sons, cheiros… No fim do século XIX, um médico judeu inventou uma língua franca, o esperanto; depois, durante o nazismo e o estalinismo, os esperantistas foram perseguidos e, muitos deles, exterminados. Cresci na convicção de que o esperanto poderia ser uma via para o entendimento entre todos e um caminho para a paz. Quis fazer uma espécie de homenagem a essa tentativa de harmonia entre os povos.

“Porque a literatura, sabe?, é exactamente o oposto deste neopopulismo anti-intelectual que defende uma escrita linear para chegar ao grande público, esquecendo a herança de vinte e oito séculos e recusando-se a perceber que a literatura só persiste porque reescreve, revolucionariamente, não só o mundo em que vivemos como tudo o que já antes foi escrito.”
in Teoria dos Limites, pág. 86

RSM: Esta uma definição proposta pelo escritor, personagem principal neste livro. Como escritora também concorda com esta definição?
MMV: Penso que o neopopulismo está a tomar conta de tudo, desde a política às artes. O combate a tudo o que é intelectual insere-se no pragmatismo vigente. Não se pode escrever sem ter lido muito, muitíssimo, tal como não se pode governar esquecendo a História. Ninguém tem inspirações divinas, não há iluminados e, se os há, são perigosos. Irritam-me muito os escritores que afirmam não ser preciso ler Proust, Tolstoi, os clássicos, numa atitude de sobranceria que não entendo. Um escritor é, antes de mais, um leitor. Não gosto de atitudes que apagam a História, seja ela da literatura, da economia, da política, da arte, das civilizações. Essa espécie de virgindade e de inocência primitiva parecem-me uma construção não só falsa como presumida.

RSM: Qual a sua personagem preferida e porquê?
MMV: Não gosto de todas as personagens ou, pelo menos, não gosto igualmente de todas. Tem sido curioso ouvir as pessoas escolherem a personagem x ou y como a sua preferida; os homens, por exemplo, dizem ser a Mariana e a Paula e penso que nesta escolha, entre duas mulheres tão diferentes, se perpetua a velha oposição entre a mulher anjo e a mulher fatal, uma espécie de arquétipos do inconsciente masculino. As mulheres mais velhas preferem a avó, as mais novas oscilam entre a ana B. e a Mariana. Noutro dia, alguém me dizia que a Mariana e a MªJoão eram uma espécie de duplos, e dei-lhe alguma razão, embora não tivesse pensado nisso na altura. Confesso que tenho debilidade pelo João Caetano mas, provavelmente, é por ser homem e me ter sido muito complicado entrar nesse misteriosíssimo universo masculino.

RSM: Quais os seus limites?
MMV: Os meus limites: coarctar a liberdade do outro, ser injusta, não ser solidária, recusar participar em actividades cívicas ou políticas a favor do bem comum. O meu lema é tentar fazer com que as pessoas sejam um bocadinho mais felizes.


RSM: Terminado o livro, o trabalho de revisão é penoso e moroso ou, pelo contrário, é um trabalho fácil e de convivência pacífica?
MMV: Escrevo muito lentamente, sou obcecada pela verosimilhança e a verdade histórica, por isso não reescrevo quase nada, porque levo muito tempo a construir as situações, as personagens, as frases. Quando acabo, peço ajuda a três amigas muito próximas e cúmplices, a Inês Pedrosa, a Julieta Monginho, a Patrícia Reis que, generosamente, revêem e propõem alterações ou correcções. Também dou o manuscrito a ler ao meu filho mais novo, ao meu ex-marido e a dois ou três amigos, mas aí não é a ideia de revisão que me move e sim a da apreciação, a de ouvir as observações que fazem e que poderão levar a alguma alteração no caso de consideram que alguma coisa não está correcta ou não é suficientemente clara. Não é, portanto, um trabalho penoso nem moroso.

RSM: Não deixo de lhe dar os parabéns pelo livro, salientando que gostei muito da forma como rematou esta história ou Teoria, para terminar com a pergunta: que leituras a encantaram por estes dias?
MMV: Em primeiríssimo lugar, Os memoráveis, da Lídia Jorge, de que gostei imenso. Outro livro, absolutamente admirável e que devia ser de leitura obrigatória, foi A filha do Leste, da Clara Usón, que ganhou o Prémio da Crítica (o mais importante galardão espanhol), que acabei há pouco de traduzir. Reli também, para a propor como leitura comemorativa do centenário do nascimento da Duras na Casa Fernando Pessoa, A doença da morte, que é um dos livros da minha vida; dois romances sobre a guerra de 14, Au revoir, là haut, de Pierre Lemaitre (prémio Goncourt) e 14, de Jean Echenoz; a biografia de Jorge Semprún que, tal como a Duras, é um dos meus escritores favoritos; e ainda a tetralogia de Jean-Philippe Toussaint. Agora, espero ansiosamente que o carteiro bata à porta para me entregar o último romance de Ignacio Martínez de Pisón.

E muito obrigada em meu nome e em nome do Clube de Leitores, bem-haja!

2 comentários:

  1. As duas primeiras perguntas são completamente ao lado, uma prova de que o(a) entrevistador(a) não entendeu as citações das quais se serviu para ensaiar a pergunta. Valeu a boa vontade da autora que conseguiu responder ao mesmo tempo que explicava ao(à) entrevistador(a) as citações.

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  2. Sabe, em rigor não discordo das suas observações (em especial quando à 2ª questão), acontece que são várias as formas de colocar as perguntas, e perguntar a contrário, de forma desafinada ou de forma desalinhada, é um das minhas formas preferidas de o fazer, principalmente quando penso que partilho o mesmo ponto de vista do entrevistado, de forma a que a construção, ou o ping-pong entre pergunta e resposta são seja esperado e monocórdico, não sei, penso que muitas vezes tudo fica mais claro pela contradição, ou estou apenas a ser também contraditória.

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