quinta-feira, 27 de março de 2014

Pedro Guilherme-Moreira, dia 4 (a manhã do mundo dele)


dia 4: a manhã do mundo dele

O pai aprendera a conquistar a calma e a serenidade apesar dos prazos da advocacia, mas quando viu o primeiro livro publicado uma especial azáfama contendeu com a brisa que dirigia os ramos do imponente diospireiro, o diospireiro que inaugura o pomar caseiro onde, entre a laranjeira, a tangerineira, a macieira e o limoeiro, o pai quis que se plantasse uma pequena magnólia. Porque o pai é o pai. O filho ouviu o pai na rádio, viu o pai e o livro do pai, "A manhã do mundo", em dezenas de jornais e revistas e até nas televisões, mas nada mudou, nem sequer lhe pareceu uma pessoa especial, o pai continuava a ser o pai, um homem grande e forte a quem se podia atirar vezes sem conta sem um ai, o colo largo e insistente, o equilíbrio dos beijos chatos, ora os dele ao pai, ora os do pai a ele, os indispensáveis beijos chatos. O livro, numa primeira fase, andava em todas as livrarias, ele ainda o tentou ler porque quis, um dia chegou e disse a si próprio "vou ler um livro" e pegou no do pai como podia ter pegado noutro qualquer. E leu-o. Leu-o quase todo. O pai nunca lhe perguntou o que achava. Ele nunca achou que lho devia. Passaram-se assim os meses e as coisas voltaram à normalidade sem que, entre ele e o pai, alguma coisa tivesse mudado. O diospireiro ainda balouçava, a magnólia sobrevivia no centro do pomar, e assim os frutos. O pai dizia muitas vezes, na brincadeira, que era graças ao desprezo caseiro que se mantinha focado. O pai continuou a engordar. O filho a crescer. A mãe a ficar mais bonita. No princípio do ano lectivo ele tinha dito aos pais, sem detalhar o quê e o porquê, que tinha tirado uma nota alta na disciplina artística lá da escola. Era a primeira vez. Os pais perguntaram "ai sim?" e o jantar prosseguiu. No fim do primeiro trimestre ele trouxe uma nota mais alta do que o habitual. Os pais pensaram que devia ser mesmo uma obra singular, mas tornaram à vida, habituados ao filho que, como é costume em casas regulares, se ama para lá de todas as forças e no qual se encontra sempre o génio. Os pais sabiam que isso era o equívoco normal do amor. E em conversas evitariam falar tanto dos dotes, como dos defeitos do rapaz, até porque longe viria o tempo em que o seu menino pudesse ser comparado aos monstros sem pescoço de Tenesse Williams *, os putos do Gooper, como ele pai e a mãe não podiam ser comparados aos próprios Gooper e Mae, até porque o seu menino estava crescido, tinha pescoço, era bonito. Mas eis que ele traz a obra para casa no final do ano lectivo. A obra era a capa decorada da própria disciplina. Mostrou-a ao pai, que, perdido noutros afazeres, disse que estava bem sem ver. Por isso se colocou o miúdo entre o pai e o afazer com um sorriso cúmplice e o pai reparou de raspão no tema. É sobre o 11 de Setembro, que engraçado, disse o pai. Mas continuou a não ver. A vida seguiu e a capa ficou em cima do aparador. Um dia à noite o pai olhou com outras armas para a obra e resplandeceu. Viu naquela colagem - logo o pai, que nunca gostara de colagens - uma espécie de verso daquele dilacerante final d"O Túmulo dos Pirilampos", de Isao Takahata, em que se vê os pedaços de solidão da menina, o pai viu a vida que o filho vivia apesar dele, o pai viu que estava todo dentro dela. Aquela colagem não era uma lembrança do 11 de Setembro. Aquela era a lembrança que o filho tinha do pai e que brilhava tanto que não se continha em casa, onde a vida era temporal e os ritmos os de sempre. Mas o pai não quis mostrar a "obra" por causa dessa comoção. O pai quis mostrar a obra por ser mesmo boa e por poder, como não pode - ou não quer - mostrar a um meio de que desconfia a sua maior obra, o próprio filho, agora maior do que a mãe. O pai queria mostrar a fotografia que lhe tirou este fim-de-semana e em que reparou que ele está mesmo um homem. Um homem bonito. Um homem que lhe vai tomar o lugar como os pais bons sonham que os filhos bons tomam - não a mesma profissão, não a mesma arte, mas as coisas boas só dele. O momento em que um pai olha para um filho e vê, não a cria, não a entidade frágil que tem de proteger a todo o custo, mas o homem que fez com os braços. Com apoio das mãos. Com choro, com raiva. É um rapaz bonito. A alma parece descansar, o corpo serena, não é bem já não precisar de cuidar de si: o pai percebe apenas que a velhice pode avançar com justeza, pode fazer o seu percurso, porque aí está a obra. A manhã do mundo dele.

* da peça "Gata em telhado de zinco quente"
PG-M 2012
foto do autor
*texto e fotos são replicação feita a partir do blog Ignorância: http://ignorancia.blogspot.pt/2012/06/manha-do-mundo-dele.html
*Pedro Guilherme-Moreira - esta semana em destaque no Clube de Leitores

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