Na casa onde vivi a minha infância e adolescência, a presença da
morte sempre foi uma constante, e encarada daquela maneira normal que os
longos hábitos provocam nas pessoas. Uma quase rotina. Sempre me lembro
de haver em casa alguém doente. Muito doente. Gravemente doente.
Moribundo. Morto.
Passei a minha infância rodeada de tias e tios muito velhos, entre as
paredes de um casarão com um grande corredor, que rangia pela madrugada
dentro, sob os passos cadenciados do tio Ernesto, que sofria de
insônias.
Naquele tempo era uma vergonha deixar morrer no hospital os paredes
da província. Por isso havia lá em casa um quarto para onde vinham os
velhos tios quase moribundos, donde passavam para a casa de jantar assim
que morriam. A preceder a chegado do tio havia sempre um telefonema. A
tia que fazia o telefonema murmurava, chorosa, “coitadinho, já vai para
aí”. A tia que recebia o telefonema, igualmente chorosa, prometia que o
tio, “coitadinho, já vinha aí”.
Então era um corrupio de médicos, e depois vinha o Sr. Pinto dar
injeções, e a prima Luísa, enfermeira em Oncologia, aparecia sempre que
lhe era possível, e as velhas tias davam ordens e tratavam de tudo, e
faziam gráficos das temperaturas, e sabiam as horas de todos os
remédios, e enchiam-se de olheiras e dormiam pouco.
De vez em quando, havia um ou outro tio que, sabe-se lá por que
milagre, arrebitava. “São as melhoras da morte”, dizia então a tia
Clara. Não eram, e ele já conseguia voltar para a terra. Então o quarto
era limpo e esfregado, e estava de janelas abertas uma data de dias –
mas a tia Clara nunca ficava muito convencida da cura, torcia o nariz e
resmungava: ” Está aqui está a cair-nos cá em casa outra vez.”
Quase sempre acertava.
Então, depois de mais uns dias de cama, de idas e vindas de médicos,
do Sr. Pinto e da prima Luísa, o tio – ou a tia – acabava por morrer.
As velhas tias e as criadas lá de casa desmanchavam a sala de jantar, a
mesa enorme ficava empilhada nas muitas tábuas que a constituíam, as
cadeiras encaixavam-se umas nas outras, e tudo enfiado para arrecadação.
O tio morto era trazido do quarto e metido dentro do caixão colocado no
meio da sala de jantar, exatamente no lugar onde habitualmente
almoçávamos e jantávamos. Começavam a chegar muitas pessoas e muitos
ramos de flores, o cheiro a éter misturando-se com o cheiro adocicado
dos crisântemos, dos cravos, das rosas, dos lírios, e eu a pensar que
pena a sala de jantar não estar sempre assim tão colorida.
Era muito divertido ter um tio morto em casa. As pessoas não se
lembravam de mim, deitava-me à hora que me apetecia, e ninguém se
importava em verificar se tinha lavado os dentes. E, a juntar a toso os
rituais, havia ainda outro, o mais fascinante, o mais apetecido de
todos: o ritual do livro. Enquanto aos adultos se servia café e
biscoitos para aguentarem o velório madrugada fora – havia sempre uma
tia (irmã do morto?, mulher do morto?, filha do morto?) que se
aproximava e me entregava um embrulho, quase sempre de papel colorido e
fita dourada, como se fosse Natal, e lá dentro – eu já sabia – um livro.
O livro ia servir-me para aquentar o velório dentro do meu quarto, sem
incomodar ninguém, pois toda a gente iria estar demasiado ocupada para
me poder atender. O livro era a melhor companhia – enquanto na sala o
morto repousava entre ramos, coroas e fitas lilases de saudade eterna.
Por isso as primeiras páginas da maioria dos meus livros de infância
têm estranhas dedicatórias: “No dia da morte do tio António”, “para te
lembrares da tia Leonarda, que tanto gostava de ti”, “com um beijinho da
tia Maria, já que o tio Filipe, que morreu ontem, não te pode dar”.
Outros mais lacônicos, dizem apenas: “No dia da morte do tio Filipe.” OU
do tio Augusto. Ou do tio Ricardo.
Por isso hoje, à distância destes anos todos, eu confesso a minha
profunda gratidão a essa imensa legião de tios mortos – tios diretos,
tios-avós, tios-bisavós, tios que nem tios eram, mas que, por qualquer
razão, tinham ganho o direito ao parentesco e a morrerem na minha sala
de jantar. Foram eles, sem dúvida alguma, que, sem o saberem, fizeram
nascer em mim a grande paixão pelos livros. Com os livros cresci,
brinquei, ri, chorei. E fui educada pelas personagens que encontrei nas
suas páginas e que, ao contrário dos velhos tios, não morreram nunca.
Alice Vieira
* o texto ‘Uma Dívida de Gratidão’ foi retirado da obra “Bica
Escaldada”, de Alice Vieira. A acentuação gráfica seguiu as regras
brasileiras para facilitar a compreensão dos nossos miúdos, opa, das
nossas crianças.
Penélope Martins
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