segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

beijoS urbanoS


Quando os viu beijarem-se sentiu que tudo o que tinha, tinha pouco, a casa que foi dos pais, já não tinha pais, um acidente de carro transformou-o no proprietário de um T3 no centro da  cidade, um quarto andar sem elevador, mobilado sem gosto, porque um excesso de móveis, um excesso de arestas e esquinas com propensão em excesso para agredir corpos humanos, e um carro com mais de cinco anos a precisar, em estado de urgência, de mudar o óleo, as pastilhas dos travões e os quatro pneus.
Para lá dos bens sujeitos a registo pouco mais havia a declarar, que não se vai pôr a contar pares de sapatos e pares de meias, que se fosse preciso contar precisaria de poucos dedos.
Mais do que os das mãos.
Menos do que os das mãos e os dos pés juntos.
Quando os viu beijarem-se.
Da primeira vez e de todas as outras.
Sempre o beijo.
Um beijo que o incomodava, macerava, moía.
Uma dor miúda.
A dor a crescer, difusa, sem lugar para apontar com o dedo indicador.
E quando o beijo, da primeira vez e de todas as outras, estava no escritório.
Onde mais podia estar?
No T3 no centro da cidade?
Quase anedota!
Estava no escritório.
É uma pessoa assaz fácil de localizar, mesmo fora das horas de expediente, a probabilidade maior, resultado matemático, é encontrarem-no no escritório.
Até o correio pessoal já desviou para o escritório.
Poucos lhe escrevem, a companhia da água, do luz, do gás, não mais.
Quando o beijo, estava no escritório.
Estava, em pequenos sorvos, a enfiar no corpo o quinto café do dia.
O escritório longe do chão, o prédio de oito andares.
Ele no oitavo andar de olhos no chão.
No chão as pessoas lembram formigas.
Formigas no passeio, formigas dentro dos carros, formigas a andar de mota, formigas atrás de janelas e de portas, dentro de casas, de fábricas, de cinemas, formigas urbanas, formigas ufanas, formigas sem norte, desnorteadas.
Formigas.
Formigas e mosquitos.
Estava à janela quando à porta do prédio em frente encontrou um ponto de cor, vermelho, imóvel.
Demorou a perceber que um ramo de rosas.
Tentou contá-las, àquela a distância era impossível contá-las, disse para si duas dúzias, não as contou, pensou que contou, adivinhou, acertou.
Será que com as flores esconde uma caixa de bombons de chocolate daqueles com uma avelã dentro, a que chama douradinhos e que invocam os estofos em pele de bancos traseiros de limousines, pensou, não conseguindo evitar o pensamento e o desdém.
Não gosta de chocolate.
Não conhece ninguém que não goste de chocolate.
No dia em que conhecer vai perguntar-lhe se depois do trabalho um passeio à beira rio, se ela aceitar, já decidiu que nesse dia sai a horas do escritório.
Acabou o café e decidiu esperar.
Passaram cinco minutos.
O ponto vermelho. O ramo de rosas.
Imóvel.
Indeciso sobre o que sentir, se impaciência se vontade de desistir, decidiu esperar mais três minutos.
Olhou para o relógio para cronometrar o tempo, como se não tivesse tempo a perder, e quando voltou a descer os olhos ao passeio o sujeito do ramo de rosas já não estava sozinho.
Seriam rosas?
Podiam ser cravos!
Nunca viu cravos à venda nas floristas, excepto em Abril.
Adivinhou e acertou, eram rosas.
De braços estendidos, o ramo de rosas como se um bolo de aniversário, dezenas de velas para apagar num sopro.
Imaginou-a bonita, os olhos castanhos, os lábios vermelhos, talvez sardas.
Era loira e o vestido era vermelho como as rosas do ramo.
Excesso de vermelho, pensou, como nos filmes do Tarantino.
E se as flores escondessem uma pistola.
E se a pistola uma bala.
E se não amor, a bala no corpo e no vestido mancha nenhuma, um buraquinho apenas, talvez de uma traça, insuficiência de naftalina no Inverno que passou, resolve-se com um pontinho, dois pontinhos, agulha e linha da mesma cor e desgraça nenhuma
Tarantino de dedal a salvaguardar o dedo, porque agulhas nas suas mãos, perigo maior que pistolas.
Ela, com a vivacidade de um peixe fora de água, indiferente ao ramo de rosas, em estado de urgência, a procurar-lhe o abraço, o beijo.
O ramo de flores soterrado entre os corpos, melhor emprego teria num funeral, concluiu.
Quando o beijo, assim da primeira vez e assim todos os dias depois ou quase assim, porque sem ramo de flores para desgosto das floristas.
Que o negócio vai mal.
Que nos dias que correm, as vendas mais para quartos de hospitais e para funerais, ou seja, para alegria  da dor e para perfumar a saudade, pensou.
Que foi feito do amor? – Perguntavam sem mais intenções do que as comerciais. E respondiam à própria pergunta com um resignado enfim.
Ou seja, lamentações sem muro contra a carestia da vida, concluiu.
E o beijo assim, todos os dias, em modo repetição, essa coisa a que se convencionou chamar rotina, ele à porta do prédio em frente, pontualmente à espera no passeio, as mãos nos bolsos das calças, um não sei quê de cão de guarda, de porteiro, de candeeiro de rua.
O seu cinismo a desejar que aparecesse um cão que lhe humedecesse a base.
Assim, todos os dias, sem ramo de rosas mais difícil de distinguir, até que ela desce, o beijo, o mesmo beijo acontece até desaparecem de mãos dadas no fim da rua.
Assim, enquanto em pequenos sorvos cada vez mais amargos, enfia no corpo o quinto café do dia.
Ou quase assim, que desde o oitavo andar, certezas nenhumas porque as pessoas lembram formigas.


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