Quando os viu
beijarem-se sentiu que tudo o que tinha, tinha pouco, a casa que foi dos pais,
já não tinha pais, um acidente de carro transformou-o no proprietário de um T3
no centro da cidade, um quarto
andar sem elevador, mobilado sem gosto, porque um excesso de móveis, um excesso
de arestas e esquinas com propensão em excesso para agredir corpos humanos, e
um carro com mais de cinco anos a precisar, em estado de urgência, de mudar o
óleo, as pastilhas dos travões e os quatro pneus.
Para lá dos bens
sujeitos a registo pouco mais havia a declarar, que não se vai pôr a contar
pares de sapatos e pares de meias, que se fosse preciso contar precisaria de
poucos dedos.
Mais do que os das
mãos.
Menos do que os
das mãos e os dos pés juntos.
Quando os viu
beijarem-se.
Da primeira vez e
de todas as outras.
Sempre o beijo.
Um beijo que o
incomodava, macerava, moía.
Uma dor miúda.
A dor a crescer,
difusa, sem lugar para apontar com o dedo indicador.
E quando o beijo,
da primeira vez e de todas as outras, estava no escritório.
Onde mais podia
estar?
No T3 no centro da
cidade?
Quase anedota!
Estava no
escritório.
É uma pessoa assaz
fácil de localizar, mesmo fora das horas de expediente, a probabilidade maior,
resultado matemático, é encontrarem-no no escritório.
Até o correio
pessoal já desviou para o escritório.
Poucos lhe
escrevem, a companhia da água, do luz, do gás, não mais.
Quando o beijo,
estava no escritório.
Estava, em
pequenos sorvos, a enfiar no corpo o quinto café do dia.
O escritório longe
do chão, o prédio de oito andares.
Ele no oitavo
andar de olhos no chão.
No chão as pessoas
lembram formigas.
Formigas no
passeio, formigas dentro dos carros, formigas a andar de mota, formigas atrás
de janelas e de portas, dentro de casas, de fábricas, de cinemas, formigas
urbanas, formigas ufanas, formigas sem norte, desnorteadas.
Formigas.
Formigas e
mosquitos.
Estava à janela
quando à porta do prédio em frente encontrou um ponto de cor, vermelho, imóvel.
Demorou a perceber
que um ramo de rosas.
Tentou contá-las,
àquela a distância era impossível contá-las, disse para si duas dúzias, não as
contou, pensou que contou, adivinhou, acertou.
Será que com as
flores esconde uma caixa de bombons de chocolate daqueles com uma avelã dentro,
a que chama douradinhos e que invocam os estofos em pele de bancos traseiros de
limousines, pensou, não conseguindo evitar o pensamento e o
desdém.
Não gosta de
chocolate.
Não conhece
ninguém que não goste de chocolate.
No dia em que
conhecer vai perguntar-lhe se depois do trabalho um passeio à beira rio, se ela
aceitar, já decidiu que nesse dia sai a horas do escritório.
Acabou o café e
decidiu esperar.
Passaram cinco
minutos.
O ponto vermelho.
O ramo de rosas.
Imóvel.
Indeciso sobre o
que sentir, se impaciência se vontade de desistir, decidiu esperar mais três
minutos.
Olhou para o
relógio para cronometrar o tempo, como se não tivesse tempo a perder, e quando
voltou a descer os olhos ao passeio o sujeito do ramo de rosas já não estava
sozinho.
Seriam rosas?
Podiam ser cravos!
Nunca viu cravos à
venda nas floristas, excepto em Abril.
Adivinhou e
acertou, eram rosas.
De braços
estendidos, o ramo de rosas como se um bolo de aniversário, dezenas de velas
para apagar num sopro.
Imaginou-a bonita,
os olhos castanhos, os lábios vermelhos, talvez sardas.
Era loira e o
vestido era vermelho como as rosas do ramo.
Excesso de
vermelho, pensou, como nos filmes do Tarantino.
E se as flores
escondessem uma pistola.
E se a pistola uma
bala.
E se não amor, a
bala no corpo e no vestido mancha nenhuma, um buraquinho apenas, talvez de uma
traça, insuficiência de naftalina no Inverno que passou, resolve-se com um
pontinho, dois pontinhos, agulha e linha da mesma cor e desgraça nenhuma
Tarantino de dedal a salvaguardar o dedo, porque agulhas nas suas
mãos, perigo maior que pistolas.
Ela, com a
vivacidade de um peixe fora de água, indiferente ao ramo de rosas, em estado de
urgência, a procurar-lhe o abraço, o beijo.
O ramo de flores
soterrado entre os corpos, melhor emprego teria num funeral, concluiu.
Quando o beijo,
assim da primeira vez e assim todos os dias depois ou quase assim, porque sem
ramo de flores para desgosto das floristas.
Que o negócio vai
mal.
Que nos dias que
correm, as vendas mais para quartos de hospitais e para funerais, ou seja, para
alegria da dor e para perfumar a
saudade, pensou.
Que foi feito do
amor? – Perguntavam sem mais intenções do que as comerciais. E respondiam à
própria pergunta com um resignado enfim.
Ou seja,
lamentações sem muro contra a carestia da vida, concluiu.
E o beijo assim,
todos os dias, em modo repetição, essa coisa a que se convencionou chamar
rotina, ele à porta do prédio em frente, pontualmente à espera no passeio, as
mãos nos bolsos das calças, um não sei quê de cão de guarda, de porteiro, de
candeeiro de rua.
O seu cinismo a
desejar que aparecesse um cão que lhe humedecesse a base.
Assim, todos os
dias, sem ramo de rosas mais difícil de distinguir, até que ela desce, o beijo,
o mesmo beijo acontece até desaparecem de mãos dadas no fim da rua.
Assim, enquanto em
pequenos sorvos cada vez mais amargos, enfia no corpo o quinto café do dia.
Ou quase assim,
que desde o oitavo andar, certezas nenhumas porque as pessoas lembram formigas.
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