Nunca havia pensado na possibilidade de usar o elétrico para
transporte, em meio aos cliques e arigatôs que se misturavam aos dankes e
outras coisas dos turistas que por ali andavam. Mas não era pra já que
ele tinha algo mais o que fazer, então, se deu ao desfrute de inverter a
ordem lógica de seu pensamento cotidiano para andar a fazer coisas
nunca antes experimentadas, quer por preconceito, quer por falta de
disponibilidade emocional p’aquilo.
Tinha um ar marinho acima de tudo, o rosto redesenhado pelo tempo, os
cabelos grisalhos bem cortados que acompanham a barba serrada. O casaco
de lã, embora pesado e em tom profundo de azul, não conseguia esconder a
imensidão daqueles ombros e a longitude dos braços que lhe compunham a
rústica delicadeza de um senhor do trabalho duro.
Ingressou no transporte um tanto tímido, felizmente pôs-se sentado ao fundo no vazio que beneficiava o acaso.
Ela já estava lá. Um banco a frente, na outra fila. Uma saia
encarnada lhe vestia as pernas, e por cima, aquilo que deveria ser uma
espécie de suéter não fosse o caimento mais do que despojado, prestes a
fazer nascer dali um novo vestido. Os cabelos longos e loiros, soltos
sobre o rosto escondiam os olhos e o resto.
Observou primeiros os pés mantidos em pontas para tocar o chão.
Aquilo era tão curioso quanto improvável para se sentir bem e relaxado,
pois não há gente que se disponha a relaxar em pontas de pés, nem que
elas venham enquanto se está sentado.
As pernas se dispunham ondas, os quadris se viam fartos e entre os
tais uma praia recôndita, da qual se procriavam chamamentos. Um saco de
cerejas desenhava a satisfação da menina e lhe conferia um status de
pintura impressionista.
Os dedos longos se metiam no saco de papel branco e enlaçavam aquela
que parecia única pela voracidade do apetite e interesse pelo sabor.
Entre as mechas dos cabelos ele avistava a boca lascando a fruta até
lhe reter o caroço entre os dentes. Depois o caroço ao saco e o talinho
que não lhe importava remexer entre os dedos antes da próxima cereja.
Apaixonou-se como não deveria; já lhe percebia o hálito de cereja
exalando pelos poros e os olhos a faiscar açúcares enquanto lhe dissesse
seu nome.
Tão menina, tão delgada, o corpo todo vibrante no correr da viagem no
tilintar do bonde, desde os pequenos passos à alta estrela.
O sol lhe derramava ainda mais brilho e os cabelos soltos, frescos de
banho – o que se podia notar, do volume ao perfume eram voluptuosamente
bem dispostos como moldura àquele rosto de anjo que fatalmente devorava
a vida daquelas frutas.
Desejou morder sua boca e deslizar as mãos por sobre o desmembrado
suéter branco aonde lhe apontavam os seios firmes. Desejou apanhar
naquela cintura e pintar nela uma santa ceia de verbos com movimentos
lentos, mesmo lentos, típicos de quem compreende o tempo e se torna dele
fiel depositário.
Sentiu em si o romper do barco agitado, uma convulsão de quimeras, a
espuma das ondas dos dias em que lhe cabiam tão bem esperanças. Já não
tardava chegar, então não quis evitar os outros olhares abusivos sobre a
menina e no meio das tantas, sem mais cerejas, teve dela um sorriso com
o saco de papel amarrotado, recheado de caroços.
- E já não resta mais nada.
Disse ela para ele ou para o ar, não se sabia, e a voz que lhe saía
do peito era da mesma cor avermelhada da saia e no mesmo macio veludo de
cereja e havia o mesmo fio desfiado, alongado, branco nuvem do suéter
que lhe aquecia o colo.
Na parada final ela desceu com agilidade, sacou a mala e logo já era
vista ao longe no parque, longe demais para que lhe entrassem pelos
ouvidos as palavras dele:
- Todo homem tem o direito de sonhar.
Penélope Martins
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