Terça-feira, 20 de Novembro
A cidade acordou cinzenta
e fria, não sei se apenas nevoeiro ou se nevoeiro misturado com o fumo salgado
das castanhas que, sem aviso e de um dia para o outro, em respeito pelo boletim
meteorológico e não pelo calendário, o tempo não respeita o tempo, se
substituíram aos gelados nos carrinhos e começaram a estalar por toda a cidade,
obrigando as castanheiras a actualizar publicidade e pregões, substituindo nas
vozes a lembrar varinas o estival é fruta
ó chocolate pelo fadista quentes e
boas, quentinhas(1).
Acordei amargo e cansado.
A boca amarga, amargos os pensamentos.
Tomei um banho longo. Deitei-me
na banheira. O meu corpo submerso em água morna, o conforto da água, a leveza
do corpo o peso da alma.
Consegui equilíbrio
suficiente para mais um dia.
Envelheci. Apenas eu
consigo perceber como envelheci.
As minhas mãos inertes,
asas partidas.
O meu corpo inerte, o meu
sexo inerte, um corpo que já não consegue dar-me prazer, apenas dor… apenas
dor.
O corpo não me responde,
a vontade não me responde.
Depois de confirmar a
apatia do meu sexo aos meus pensamentos mais sôfregos, percebo em mim um sorriso
maroto, rio-me de mim, comovo-me comigo, sinto-me a afogar, quase choro,
deslizo para debaixo de água, não choro, os peixes não choram, não cantam e não
choram, sinto um conforto uterino até ao limite do desconforto, preciso
respirar, preciso respirar, a tentação de deixar de respirar, apenas os meus
braços fora de água, as minhas mãos abertas, os dedos afastados até magoar,
asas partidas, olho para as minhas mãos, a pele, quase branca, encharcada,
enrugada, a tentação de deixar de respirar, até que, as minhas mãos a decidir
por mim, procuro onde me agarrar, agarro-me a uma memória, a única vez que fui
apanhado em flagrante delito, eu, as mãos mecânicas e diligentes, mil metros
barreiras, a meta a segundos de distância, o público eufórico e o meu avô a entrar
no quarto imediatamente depois de ter batido à porta, eu de pau feito na cama,
a camuflar o volume do meu sexo com um livro aberto e uma almofada, eu a travar
a fundo a velocidade do meu respirar e o meu avô a dizer-me coisas de que não
me lembro porque nada ouvia, apesar de abanar a cabeça em sentido afirmativo a
tudo o que me dizia.
Sem se aperceber, o meu
avô a sair do quarto, o tamanho da minha vergonha controlado, a minha
respiração normalizada, a minha capacidade de audição de novo operacional.
- Esse livro parece-me
interessante, fazes o favor de mo emprestar quando terminares a leitura. – As
exactas palavras do meu avô antes de sair do quarto.
Percebeu tudo, eu
vermelho como um tomate e a palavra tomate a deixar-me ainda mais envergonhado.
Dias depois
confidenciou-me com graça, que no seu tempo, bater píveas era gesto que devia
ser contabilizado e reconhecido pelo próprio arguido em acto de confissão, o
qual, depois de proferida a sentença em julgamento sumário, era
invariavelmente, em respeito pelos costumes e pela jurisprudência ao tempo,
sujeito a pena variável entre a meia dúzia de padre-nossos ou a dúzia de ave-
marias e o fogo eterno do inferno.
- Quantas vezes
praticaste o vício solitário? – A pergunta era sempre a mesma e era sempre a última,
a mais importante, a que mais intimidava e envergonhava.
A criança que foi o meu
avô a sentir culpa de cada vez que tocava em si próprio, a sentir mais culpa
ainda de cada vez que em palavras confessava que tocava em si próprio.
- Sabes, Vasco, estragaram-nos
o prazer. Tudo o que supostamente dava prazer era pecado, até o canto IX d’Os
Lusíadas nos proibiram. E os dias eram levados assim, com medo, sempre à espera
que um raio divino nos acertasse no cocuruto e nos deixasse fulminados no chão.
Se calhar ainda és muito novo para perceber o que te vou dizer, mas vou
dizer-to na mesma: na vida, faz sem medo ou pena todas as coisas que te
apeteçam ou dêem prazer, porque pecado, é apenas magoar as pessoas.
Foi a lição de vida mais
precoce da minha vida. Lembro-me que me senti insultado quando me disse que
ainda era muito novo para perceber. Estás a ver avô, não era muito novo para
perceber.
Lembro-me de todas as
palavras que utilizaste.
Lembro-me que passei a
fechar a porta à chave.
(1) Pregão que em que se inspirou a letra do fado O homem das castanhas de José Carlos Ary
dos Santos
Olá, sou seguidor, entusiasta e leitor deste blog há algum tempo. Como publicarei dois livros no começo de dezembro, gostaria de saber se teriam interesse em recebê-los.
ResponderEliminarAbraços
Olá «Goa»,
ResponderEliminarPor favor envie-me um email: rod.ferrao@gmail.com
Obrigado, Rodrigo