quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Pretérito Perfeito


Terça-feira, 20 de Novembro

A cidade acordou cinzenta e fria, não sei se apenas nevoeiro ou se nevoeiro misturado com o fumo salgado das castanhas que, sem aviso e de um dia para o outro, em respeito pelo boletim meteorológico e não pelo calendário, o tempo não respeita o tempo, se substituíram aos gelados nos carrinhos e começaram a estalar por toda a cidade, obrigando as castanheiras a actualizar publicidade e pregões, substituindo nas vozes a lembrar varinas o estival é fruta ó chocolate pelo fadista quentes e boas, quentinhas(1).
Acordei amargo e cansado. A boca amarga, amargos os pensamentos.
Tomei um banho longo. Deitei-me na banheira. O meu corpo submerso em água morna, o conforto da água, a leveza do corpo o peso da alma.
Consegui equilíbrio suficiente para mais um dia.
Envelheci. Apenas eu consigo perceber como envelheci.
As minhas mãos inertes, asas partidas.
O meu corpo inerte, o meu sexo inerte, um corpo que já não consegue dar-me prazer, apenas dor… apenas dor.
O corpo não me responde, a vontade não me responde.
Depois de confirmar a apatia do meu sexo aos meus pensamentos mais sôfregos, percebo em mim um sorriso maroto, rio-me de mim, comovo-me comigo, sinto-me a afogar, quase choro, deslizo para debaixo de água, não choro, os peixes não choram, não cantam e não choram, sinto um conforto uterino até ao limite do desconforto, preciso respirar, preciso respirar, a tentação de deixar de respirar, apenas os meus braços fora de água, as minhas mãos abertas, os dedos afastados até magoar, asas partidas, olho para as minhas mãos, a pele, quase branca, encharcada, enrugada, a tentação de deixar de respirar, até que, as minhas mãos a decidir por mim, procuro onde me agarrar, agarro-me a uma memória, a única vez que fui apanhado em flagrante delito, eu, as mãos mecânicas e diligentes, mil metros barreiras, a meta a segundos de distância, o público eufórico e o meu avô a entrar no quarto imediatamente depois de ter batido à porta, eu de pau feito na cama, a camuflar o volume do meu sexo com um livro aberto e uma almofada, eu a travar a fundo a velocidade do meu respirar e o meu avô a dizer-me coisas de que não me lembro porque nada ouvia, apesar de abanar a cabeça em sentido afirmativo a tudo o que me dizia.
Sem se aperceber, o meu avô a sair do quarto, o tamanho da minha vergonha controlado, a minha respiração normalizada, a minha capacidade de audição de novo operacional.
- Esse livro parece-me interessante, fazes o favor de mo emprestar quando terminares a leitura. – As exactas palavras do meu avô antes de sair do quarto.
Percebeu tudo, eu vermelho como um tomate e a palavra tomate a deixar-me ainda mais envergonhado.
Dias depois confidenciou-me com graça, que no seu tempo, bater píveas era gesto que devia ser contabilizado e reconhecido pelo próprio arguido em acto de confissão, o qual, depois de proferida a sentença em julgamento sumário, era invariavelmente, em respeito pelos costumes e pela jurisprudência ao tempo, sujeito a pena variável entre a meia dúzia de padre-nossos ou a dúzia de ave- marias e o fogo eterno do inferno.
- Quantas vezes praticaste o vício solitário? – A pergunta era sempre a mesma e era sempre a última, a mais importante, a que mais intimidava e envergonhava.
A criança que foi o meu avô a sentir culpa de cada vez que tocava em si próprio, a sentir mais culpa ainda de cada vez que em palavras confessava que tocava em si próprio.
- Sabes, Vasco, estragaram-nos o prazer. Tudo o que supostamente dava prazer era pecado, até o canto IX d’Os Lusíadas nos proibiram. E os dias eram levados assim, com medo, sempre à espera que um raio divino nos acertasse no cocuruto e nos deixasse fulminados no chão. Se calhar ainda és muito novo para perceber o que te vou dizer, mas vou dizer-to na mesma: na vida, faz sem medo ou pena todas as coisas que te apeteçam ou dêem prazer, porque pecado, é apenas magoar as pessoas.
Foi a lição de vida mais precoce da minha vida. Lembro-me que me senti insultado quando me disse que ainda era muito novo para perceber. Estás a ver avô, não era muito novo para perceber.
Lembro-me de todas as palavras que utilizaste.
Lembro-me que passei a fechar a porta à chave.





(1) Pregão que em que se inspirou a letra do fado O homem das castanhas de José Carlos Ary dos Santos

2 comentários:

  1. Olá, sou seguidor, entusiasta e leitor deste blog há algum tempo. Como publicarei dois livros no começo de dezembro, gostaria de saber se teriam interesse em recebê-los.
    Abraços

    ResponderEliminar
  2. Olá «Goa»,

    Por favor envie-me um email: rod.ferrao@gmail.com

    Obrigado, Rodrigo

    ResponderEliminar