domingo, 17 de novembro de 2013

Pontos com nós, cegos


Que não! Que não o conhecia, que muito menos o amava. – Respondeu num grito.
Um grito que, queria, partisse a loiça no aparador, as chávenas do serviço de chá preferido da mãe, uma chinesice como se Companhia das Índias, os vidros das janelas, tão impecavelmente limpos como gastas as mãos da criada de servir, os cristais dos candeeiros, as lâmpadas o seu mundo em dois, em antes e não depois.
Depois do grito o silêncio.
O mundo ao seu redor igual, sólido, sem fissuras, indiferente.
O gato às voltas nas suas pernas. Quase lhe deu um pontapé. Não deu. Sabe intimamente que não prestava para alívio.
Depois do grito, silêncio nenhum.
Se Deus queria que fosse esse o seu destino, porquê perder tempo a duvidar? – As palavras da mãe.
As palavras de uma mulher, resignada e amarga, para outra mulher, ainda doce e distante da resignação.
E não outra mulher, porque mãe e filha, carne da mesma carne.
As palavras repetidas, ouvidas desde o princípio do mundo.
Há um Deus que decide e é suposto não duvidar?
Um nome diferente que podia ser igual.
A mesma data, vinte e cinco anos depois.
A mesma data porque era bonito que o casamento no mesmo dia do dos pais.
15 de Maio, mês de Maria, dia de São Isidro, O Lavrador, padroeiro de Madrid, ao qual um dia por ano, lembrando-se casados, os pais dedicavam preces pelo matrimónio.
Dedicavam preces? Iam juntos à Igreja, não mais.
E ai do pai se se atrevesse a faltar.
Uma vez faltou.
Foi à caça com os amigos.
Regressou de mãos vazias e o braço direito partido. O cavalo espantou-se com uma qualquer ninharia, sem razão.
Castigo divino, respondeu a mãe, que mais o castigou durante um mês, trinta dias contados pelos dedos das mãos três vezes, com excesso de sal e pimenta nos refogados, o que sabia, lhe apoquentava a úlcera no estômago.
Para mais o braço ficou mal composto. Perdeu a posição para a espingarda, um desgosto que nem por isso o fez assistir a mais homilias.
Porque é que era bonito, se depois tudo o resto foi feio? – Quase perguntou.
Não perguntou.
Lembrou-se apenas das palavras da avó, a mãe da mãe, a mesma história, como se palavras sussurradas ao seu ouvido apesar de a avó falar sempre alto derivado da surdez e da necessidade de se ouvir a si própria, como se por não nos ouvirmos corrêssemos o risco de não existir.
As palavras ditas como quem desvenda um segredo, um segredo que em alta voz atravessava todas portas, como quem desvenda um segredo, porque sempre as duas a sós, testemunha nenhuma, as duas no alpendre a descascar ervilhas, as duas a dobar novelos de lã, a avó a ensinar-lhe como tricotar meias e costas de camisolas, a habilidade de fazer as curvas onde encaixam as mangas, a explicar os pontos de bordar, ponto de cruz, ponto cheio, ponto pé-de-flor, ponto pé-de-galinha, ponto pena, ponto margarida, as duas de regador a dar a volta aos vasos com as sardinheiras, as sardinheiras no inverno sem graça nenhuma, as duas a caminho da missa, a única coisa que não gostava de fazer com a avó, não sabia dizer se pelo tédio do serviço, se pelo entediante senhor prior.
A avó já não estava entre nós.
As palavras da avó ficaram.
A imaterialidade das palavras confere-lhes uma resistência inesperada.
Para mais a avó dizia as mesmas palavras muitas vezes, como se com medo ou desgosto se as esquecesse.
A mãe faz o mesmo com outras palavras.
Serão mesmo outras palavras?
A palavras da avó, como quem desvenda um segredo.
O amor é só um mal que pode ou não vir por bem.
A história a repetir-se.
Talvez até um grito igual. Igual na dor, igual no tamanho da revolta, igual no querer partir coisas, ou simplesmente partir.
Podia mudar a história?
Podia fugir!
Decidiu fugir.
Fugir, como nos romances do Camilo.
Contou o dinheiro acumulado ao longo de vinte e dois natais, dias de reis, domingos de ramos, aniversários.
Juntou as jóias, um colar de pérolas, um fio de prata, um alfinete de peito, três pares de brincos, a avó dizia arrecadas, todos em ouro fino, um par com rubis encastrados, a madrinha avisou que as pedras rubis, seriam rubis?, será que a avareza da madrinha merecia crédito e confiança.
Uma medalhinha de trazer ao peito, Santa Luzia, que lhe iluminasse o caminho ou pelo menos lho desanuviasse de trevas.
Dizem que virgem da devoção de Dante Alighieri, por se encontrar o escritor, em razão dos muitos livros que lia, a perder a luz dos olhos.
O Camilo também usava óculos.
De Dante nada sabia e escritores não eram coisa do seu interesse, imaginava-os tão entediantes como o senhor prior.
O que sabia, a ironia, a história a repetir-se, era que também Santa Luzia passou por igual suplício, o ver a mãe dar-lhe destino no casamento.
Fez a mala, duas combinações, dois corpetes, dois saiotes, duas camisas de dormir, duas saias, quatro camisas, três camisolas de lã, um par de luvas, dois lenços, roupa interior, um par de chinelos, um pente, dois sabonetes.
O casaco de fazenda levá-lo-ia em mão, o chapéu na cabeça, os sapatos nos pés.
Depois de fechada, a mala lembrava uma gata prenhe de sete gatos, a rebentar pelos dois lados.
Atou-a à volta com um cordel de sapateiro que, cega de raiva, rematou a nós cegos.
Escondeu a mala debaixo da cama e, depois de uma noite de insónia, de pensamentos aos molhos, aos gritos, concluiu que não tinha para onde ir, muito menos com quem ir.
A solidão era isto.
Com a tesoura da lata de costura, com dificuldade, melhor seria uma faca, cortou o cordel que envolvia a mala.
Desfez a mala.
Devolveu as jóias à caixa de madrepérola, as roupas ao guarda-fatos e às gavetas da cómoda.
Sem ânimo saiu do quarto, sentou-se à mesa da cozinha e tomou o pequeno-almoço na companhia da mãe.
Companhia nenhuma, que mais valia estar só.
A solidão era isto.
Dizem que há olhares que matam.
Não é verdade, os olhares não matam.
A mãe continuava indiferente a barrar uma fatia de pão com compota de ameixa vermelha, a empurrar cada dentada de pão com chá de erva-cidreira.
Era bem feito que se afogasse no chá, pensou.
Esperou.
Não se afogou.
E a história repetiu-se.
Conheceu-o três dias depois de desfazer a mala, era Domingo.
Mania das pessoas em reservar os Domingos para acontecimentos importantes, mais, supostamente abençoados.
Ele estendeu-lhe a mão como se lhe entregasse o coração.
Desconfiou.
Parecia apaixonado.
Quase lhe deu pena.
Quase uma leve simpatia.
Mas quis que lhe fosse indiferente.
Tem os dentes todos na boca, parecem em bom estado.
Uma boca que não seria repugnante beijar.
O resumo dos seus pensamentos.
E, conforme os planos da mãe, casou.
Melhor sorte teve Santa Luzia que não chegou a casar.
Ou não, que uma morte assim não se deseja a ninguém.
Casou e com a herança dos dois lados faziam o maior e mais rico casal do povoado, os futuros defuntos felizes e regalados com os seus feitos em vida.
Casou sem perceber que o podia amar.
Casou com um homem que a teria amado se ela não o tivesse feito comer o pão que o diabo amassou, que o mafarrico é padeiro competente, desde a primeira noite que passaram juntos.

Raquel Serejo Martins



2 comentários:

  1. Boa noite!

    MInha primeira visita ao blog.
    Aqui todos são escritores e divulgam seus contos, é isso?


    Beijo grande e ótima semana!

    www.oblogdasan.com

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  2. Viva Sandra,

    Somos todos escritores, mais ou menos amadores. A Raquel tem dois livros publicados... Mas sim, todos escrevemos - de alguma forma.

    Divirta-se a conhecer o blog.

    Rodrigo

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