quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Os direitos da criança em notícia de Ana Cristina Pereira - do artigo ao prémio


A jornalista do jornal Público e autora, Ana Cristina Pereira, recebeu hoje o Prémio de Jornalismo "Os Direitos da Criança em Jornalismo", no dia em que se comemora o 24º aniversário da Convenção dos Direitos da Criança.

Temos o prazer de poder ter e publicar em primeira mão o texto na base da sua intervenção, que vos deixamos aqui. Vale a pena acompanhar o seu trabalho regular no jornal Público e ler os seus dois livros, "Meninos de Niguém" e "Viagens Brancas" que aliás já passou aqui no blogue.

Os direitos da criança em notícia – anatomia de uma reportagem

Ana Cristina Pereira

Discutia-se o caso de uma mulher a quem o Tribunal de Família e Menores de Sintra mandara retirar sete crianças. Esmiuçava-se o acordo de promoção e protecção, que contemplava uma laqueação de trompas. Pediram-me um artigo a esclarecer o que é isso do superior interesse da criança. 
Como explicar um conceito tão indeterminado?
Era preciso encontrar situações concretas. E, em cada uma, ouvir protagonistas, isto é, crianças e jovens em risco.

Ter acesso a crianças e jovens em risco pode ser o cabo dos trabalhos. Os adultos tendem a cortar-lhes a voz, inclusive os mais empenhados na sua defesa, apesar da Convenção sobre os Direitos da Criança lhes conferir direito de exprimirem opinião sobre questões que lhes dizem respeito.
Tenho de agradecer à presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens – Porto Oriental, Joana Trigó, e aos outros membros dessa estrutura, a começar pela assistente social Carla Carvalho, destacada pela junta de freguesia de Campanhã, a capacidade que têm de abrir a porta.
Estava reunida com Joana Trigó quando Carla Carvalho irrompeu. Havia uma emergência: era a vertigem da vida lá fora.
Escrever sobre risco e protecção não é a mesma coisa que escrever sobre o grau de dificuldade do exame de Matemática ou de Português. Há que ter mais cuidado, mais sensibilidade.
Mantive-me fora, junto a uma janela da escadaria do prédio, enquanto a técnica conversava com a rapariga, que saíra de casa da madrinha e se refugiara em casa do namorado. Falei com a mãe do namorado, que evidenciava preocupação com tudo aquilo. Quando saíram, já ela sabia quem eu era.
Ela concordou com a minha presença. Dispôs-se a falar comigo. Ainda a caminho da CPCJ expliquei-lhe bem quem era, o que estava a fazer, com que objectivo. Temos de ter a certeza de que a criança ou jovem entende que tudo o que disser pode ser publicado e em que moldes.
Quando já estava tudo encaminhado, sentamo-nos a conversar. Numa primeira fase, a rapariga, de 14 anos, falara na presença da técnica. Desta vez, preferiu estar sozinha.
Pode ajudar a presença de um adulto que transmita alguma segurança à criança ou jovem (como um familiar ou um técnico de referência). Mas os adultos podem sentir-se tentados a falar em nome dos menores de idade. Isso aconteceu num outro caso abordado na mesma reportagem.
As perguntas eram dirigidas à menina, de 12 anos. De vez em quando, a avó intrometia-se. Em várias ocasiões, a criança repreendeu-a. Recupero, a título de exemplo, o momento em que falava de quando foi levada para um lar por os pais estarem incapazes e os avós não terem condições.
- Como entendias o que estava a acontecer? – perguntei-lhe.
- Sentia-me abandonada – respondeu-me.
- Não! – cortou a avó.
- Sim!
- Eu nunca te abandonei.
- Ó avó! São os meus sentimentos! Eu é que estou a dar a entrevista!

A avó calou-se. Ao calar-se talvez estivesse a ouvir pela primeira vez alguns modos de encarar um drama que também era dela.

Talvez tudo se resuma numa palavra: respeito.
Talvez valha a pena recordar meia dúzia de regras que, pelo menos nos meus tempos de estudante, não se ensinavam nos cursos de comunicação. Aprendi-as ao praticar um jornalismo atendo aos direitos humanos, mas constam nos princípios propagados por entidades como a Federação Internacional de Jornalistas e podem ser aprofundadas com gente que muito reflecte sobre estas coisas, como Mike Jempson, director da MediaWise.
1. - Não custa o jornalista colocar-se ao nível da criança. Há várias estratégias que o livram de olhar de cima para baixo. Basta arranjar um banco mais pequeno ou curvar-se sobre a mesa.
2.            Não é preciso fazer uma voz afectada. Ser criança não é ter défice cognitivo. Há que conversar com ela com naturalidade, mostrando um interesse genuíno pelo que ela tem para dizer.
3. - Não se deve julgar a criança, nem os adultos que fazem parte da vida dela. O melhor é abster-se de comentar, até por haver muita ambivalência nas histórias de abuso, mau trato, negligência.
4. - Funciona a regra básica: fazer perguntas simples, directas – mais abertas a arrancar, mais fechadas com o avançar da conversa. Se a criança der sinais de estar a ficar transtornada, o melhor mesmo é levar a conversa para outro lado e regressar por outra via.
5. - Há que respeitar o ritmo da criança. Se ela quiser parar, para-se.
6. -Não identificar não quer dizer usar nome falso.
Entre os direitos fundamentais da criança, está o direito ao nome. Ora, os jornalistas gostam de nomes. É uma forma de lembrarem que estão a falar de pessoas de carne e osso, com uma vida, como os leitores. Só que a ética manda não identificar crianças e jovens desprotegidos e/ou delinquentes.

Os três menores de idade citados no artigo “Em nome do interesse da Criança” – publicado no Público em Fevereiro de 2013, agora distinguido com o prémio “Os direitos da criança em notícia”, atribuído pelo Fórum sobre os Direitos das Crianças – queriam ver os seus nomes associados às suas palavras. Era a sua voz num artigo sobre um assunto de interesse nacional. Como compatibilizar essa vontade com a obrigação de proteger as suas identidades?
Citei cada uma daquelas crianças referindo apenas um dos seus nomes próprios, omitindo outros nomes próprios e todos os apelidos, não fazendo qualquer referência ao bairro ou freguesia de residência, nem à escola frequentada ou ao lar para o qual uma delas estava a ser conduzida.
Não ficariam mais protegidas se tivesse recorrido a um nome falso. Muito menos se, tendo feito isso, tivesse revelado o seu local de residência ou escola. Quem não conhecesse as suas histórias, não as identifica. O artigo não acarreta risco de estigmatização ou represália. Se acarretasse, debateria o assunto com elas até perderem a vontade de ver o nome impresso, como fiz, por exemplo, quando escrevi sobre dois bandos rivais – os Pasteleira Putos Rebeldes e os Estado Terrorista do Aleixo.

Este prémio é, para mim, uma oportunidade de sublinhar o direito que as crianças têm de exprimir as suas opiniões e o dever que todos nós temos de as ouvir, pelo menos, no que lhes diz respeito. Na certeza de que uma sociedade mais informada é uma sociedade mais consciente, parece-me que urge construir pontes entre organizações de defesa dos direitos da criança e os media, no sentido de umas serem mais abertas e outros mais respeitadores das crianças.


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