O olhar dispara para fora da janela procurando alguma saída para os
dias cinzentos, a falta dos cinzeiros e a civilidade mórbida que
incomoda acima de tudo. Pequenas pombas numa revoada entoam uma cantiga
da infância ao redor da fonte, na praça central. “Seria perfeito
encontrar com ela exatamente no instante em que acontece a revoada”,
lembro que pensei isso e logo percebi o email na caixa de entrada:
“Já se passaram dez longos meses desde nossa primeira conversa e
decidi surpreendê-lo da mesma forma como a vida nos surpreendeu com
nosso raro encontro.”
Sorrio contendo a empolgação dentro do paletó, passeei o olhar ao
redor e fingi prazos esquecidos para protocolos e documentos na agenda. A
camisa azul celeste refletia minha meninice junto de um leve aroma
cítrico do perfume enviado por ela. A gravata aos poucos cedia na
alegria, “Ela é maluca mesmo e deve estar vindo para cá dia desses”.
Respondi prontamente a mensagem dizendo que o meu sim sempre estava
explícito para nosso encontro. Todos os dias o trânsito fecundo de
imagens e palavras inundavam nossas almas de uma esperança prismática,
pueril até. Mas nos reservamos no sigilo das vozes nunca ouvidas, nas
simplicidades das cartas sem abusos tecnológicos de câmeras, microfones e
mais.
Amávamo-nos silenciosamente sem saber quem éramos e tão entregues a
mais pura verdade que nos constituía. Fechei os olhos para ver os olhos
dela de perto, latejando dentro de mim. Excitei-me com a primeira
palavra, o hálito que viria dos lábios rosados e o frio da pontinha do
nariz. Olhei para minhas mãos e senti a proximidade da revelação.
Outra mensagem seguiu, desta vez no telemóvel, “encanta-me azul
azulejo. pedras negras e um passo para alcançar as mãos que usurparam
minha alma”. Tremi deslizando a cadeira para trás. Levantei-me
imediatamente e busquei pelos mínimos pertences:
- Tenho de sair para uma reunião e não regresso mais ao escritório. Até segunda-feira!
Avisei a secretária e sai carregando alguns pertences que
despistassem meus colegas de trabalho da minha sina. Ela estava ali,
próxima de mim, tão próxima que eu já podia enxergar seus passos
deslizando sobre a calçada num par de sapatos vermelhos, o desejo lhe
acendia a ponta da saia. Profundo conhecedor da minha cidade, acendia as
luzes do nosso encontro às escuras tateando as mensagens no telefone,
respondi que ela ficasse por lá, que não saísse daquele lugar, eu a
encontraria.
Avistei os braços abertos e o corpo nu da musa e quase pude perceber o
paladar das folhas de alecrim da minha rua. Caminhei desajustado e
lento, trôpego de saudade e mortificado pela paixão. Queria mostrar as
coisas do lugar e andar de mãos dadas com ela por ruas estreitas, sob
janelas que espreitam segredos, e desfiar conversas com deliciosas
chávenas de café na Brasileira.
Uma nova mensagem me deliciava com a promessa perfumada de grãos de
cidreira. Na sua mineirice, palavras em diminutivo escondiam tantos
segredos quantos fossem necessários: “mimarei você com um bocadinho de
compota de goiaba e bolo de fubá mimoso”. Mas das suas receitas me
interessavam apenas o que lhe fazia ser tão assustadoramente perfeita
para mim.
O coração alardeava. Madalena e meu último suspiro antes de me
entregar na curva da travessa da amada, já inúmeros seriam meus abraços
ao redor da sua cintura. E mesmo no ceticismo louvei ao santo que
proclamasse para nós os melhores votos.
Subi os degraus e avistei seus ombros cobertos com um xale branco.
Devagar ela se voltou para a porta e foi erguendo o corpo com gestos
mansos enquanto pronunciava um sorriso para dizer meu nome. Mas não
disse. Parou na primeira letra e esperou, tal o monumento erigido ao
escriba, com os braços suavemente abertos, os seios rijos enfeitados por
pérolas que deslizavam no colo, os lábios úmidos.
Ouviu-se a revoada e meus braços enlaçaram a cintura estreita.
Murmurei as primeiras palavras dentro da concha do ouvido dela “eis-me,
minha adorada”, para seguir num beijo sobre a pele doce do pescoço.
Seda, bruma, pêssego, gotas de óleo essencial e uma nota de cidreira
para adoçar o sabor do mimo.
Beijou-me demoradamente um beijo pagão nos bancos da igreja. Todos os
arcos se expandiram e o céu invadiu celeste até se fundir com as tramas
de algodão da minha camisa, caminhando fragmentos de nuvens dentro do
peito.
“Deito-me em ti, meu amor.”
Penélope Martins
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