quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Pretérito Perfeito


 1º Parágrafo e um pouco mais:

"Vivemos de sentimentos e não de números num relógio de sol.
Devíamos contar o tempo pelas batidas do coração."
Aristóteles (384-322 a.C.)

“ As pessoas viajam para se maravilharem com a altura das montanhas, com as grandes ondas do mar,
o longo curso dos rios, os vastos espaços do oceano, o movimento circular das estrelas;
e passam por si próprias sem ficarem curiosas.”
Santo Agostinho (354-430 d.C.)


Segunda-feira, 8 de Outubro de 2007
Talvez hoje. Talvez amanhã. Talvez depois de amanhã.
Amanhã é um dia tão útil e necessário, inevitável ou dispensável, escusado e prescindível, como qualquer outro.
Amanhã é Terça-feira. O terceiro dia da semana, do latim, tertia feira. “É Terça-feira e a feira da Ladra abre hoje às cinco da madrugada. E a rapariga desce a escada quatro a quatro vai vender mágoas ao desbarato… e a rapariga vende tudo que trazia troca a tristeza pela alegria[1].
Talvez depois de amanhã. Talvez depois de depois de amanhã.
Qualquer dia é mau para se morrer.
Qualquer dia é ridículo para se morrer.
Risível.
Vais ver, ainda nos vamos rir de tudo isto! O sorriso nos lábios com as palavras.
Se nos conseguirmos rir não foi uma desgraça!
Qualquer dia é grotesco para se morrer.
Qualquer dia. Mesmo o mais desconsolado, insípido e enfezado dia de frio e vento e chuva miudinha, daqueles dias em que nada apetece fazer, olhamos para a janela e o mundo está cinzento, granulado, aparentemente em estado líquido, e enfiamos a cabeça na almofada por mais cinco minutos, prometemos a nós próprios, no máximo dez... se no paraíso existirem penas, não serão penas de penar, nem penas de anjos ou outros seres celestes e alados, mas penas de ganso, dentro de almofadas e edredões... e como o tempo voa mais e melhor que um ganso, os cinco minutos terminam quase antes mesmo de começarem, como salário de pobre ou de desgovernado que tem fim destinado antes do dia de receber.
E na janela o mundo continua cinzento.
Chove, não uma tromba de água que nos arraste para um dia diferente, a protecção civil aconselhou que toda a população permaneça dentro de portas, as previsões são de chuva forte e intensa, e ventos de nordeste ásperos e diligentes, baixas temperaturas, talvez granizo, recomendando-se, para combate ao tédio provocado por este tipo de condições climatéricas, a leitura de romances de autores sul-americanos, a audição de jazz e a ingestão regular de chá e chocolate.
Chove, apenas uma chuva miudinha, uma chuva miudinha que não sabe chover, porque pequena e sovina, talvez medrosa, e não medrosa, persistente e meticulosa, pelo que molha inteligentes e tolos, só os tolos falam de si e da chuva, parece que dispensa guarda-chuva, porém arrasa, alaga, silenciosamente afoga, os que a desafiam.
Deram-me dois meses de vida.
Deram-me dois meses. Talvez três.
Não. Que digo eu! Até eu, Brutos para mim mesmo, a passar à faca a pouca ou nenhuma esperança que ainda me sobrava.
Tiraram-me toda uma vida por viver.
Tiraram-me os dias, as luas, os sóis, os sonhos. Tiraram-me a água fresca num copo de vidro, a água salgada do mar, a água morna do banho de cada manhã. Tiraram-me a água da chuva. As chuvas de todos os dias em que eu, leviano, saíria de casa leve, porque sem chapéu-de-chuva. Pertenço ao grupo dos tolos, felizmente em Lisboa chove pouco.
De uma assentada, foi um vendaval, foi um tufão, uma maré que encheu em dois segundos e fui roubado de todos os momentos que podiam vir a ser meus.
Recusaram-me também as lágrimas, água (quase tudo) e cloreto de sódio, como as da preta, que estava a chorar[2], usurparam-me todas as angústias, e deixaram-me na angústia maior de saber que vou morrer.
Eu sei, não como todos sabem que vão morrer, pois estou já não neste lado, estou num outro lado, estou em lado nenhum, não sei onde estou, não consigo perceber ou sentir onde estou.






[1] Referência à letra da canção É Terça-feira, de Sérgio Godinho
[2] Referência ao poema Lágrima de Preta, de António Gedeão

7 comentários:

  1. Pronto, lá vai ele para a lista dos "a-ler" :)

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    1. As intermináveis listas dos "a-ler"! Que bom pertencer a essa lista!

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  2. Queria saber onde encontrar esse livro aqui no Brasil.

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    1. Anónimo, antes de mais fico muito grata pelo seu interesse, e informo que no Brasil o livro apenas se encontra à venda on-line, no seguinte sítio:

      http://www.horizont.com.br/livro.php?isbn=9789723327151

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