Descascava a laranja com delicadeza e perfeição; preenchiam a fome
dos olhos de Hassan todas as pequenas habilidades dela. Boas maneiras na
cozinha, esplêndida fartura: especiarias maceradas para za’atar, pães
quentes, refogado de carne, cebolinha miúda, castanhas, uvas passas,
exageros de canela erguendo provocação rubra (capaz de despertar até os
mais esquecidos). Afaf era a própria vida na cozinha. Refletia no corpo
toda abastança da alma: coxas enormes e tornozelos levemente assinalados
depois das panturrilhas, quadril farto de mulher parideira que já
somava a conta de seis filhos, seios grandiosos que saltavam mesmo para
decotes mais tímidos.
Afaf era um berço de graça.
Desde que tinham chegado ao Bom Retiro, abriram um pequeno
restaurante de delícias libanesas para alimentar compradores,
vendedores, turistas e quem mais fosse ao comércio paulistano. Afaf
ficava na cozinha, quase nunca era vista no balcão. Hassan era o
atendente, o gerente e também o sujeito que fica pronto para avistar
qualquer novidade na porta da rua. Anfitrião por natureza.
Um acordo entre as duas famílias, lá mesmo no Líbano, trouxe Afaf
para o Brasil na qualidade de esposa de Hassan. Um arranjo de casamento
para os arranjos da vida em solo estrangeiro.
Afaf nunca tinha saído de perto dos pais. Os primeiros anos de
casamento foram difíceis para ela. A timidez dela sufocava a paixão que
logo abateu aquele homem caloroso. Hassan, contudo, era persistente e
engendrava pequenas travessuras entre pia e fogão, para que Afaf se
tornasse permeável ao amor.
Numa daquelas primeiras manhãs de vida conjugal, ainda cedinho, Afaf
trabalhava quitutes, estendia a massa do quibe de bandeja. Hassan, ainda
com as portas fechadas, a observava por trás, numa pequena janela
passa-pratos. Afaf pilava especiarias e sacudia as cadeiras lindamente,
depois se debruçava sobre a pia erguendo as ancas numa promessa de
deleite aromatizada por pimenta e salpicada pelas cores de canela.
Hassan não mediu consequências quando partiu ao abraço apertado do
corpo da esposa, forçando-a contra o balcão da pia num flagrante
delírio. Afaf se intimidou, pensou em não resistir ao marido que era sim
seu senhor proprietário (e dono!), mas num arroubo de loucura (por
medo, talvez), empurrou o corpo magro de Hassan até que ele se
encontrasse com o chão da cozinha, depois mobilizou o marido com seu pé,
fixando-o contra o piso. Hassan ficou cheio de raiva enquanto Afaf já
amargava total arrependimento, temendo vingança.
A sorte já não era a mesma, nada livraria Afaf do cérebro engenhoso do marido.
Afaf fez menção de se desculpar, quase implorou, Hassan quase
aceitou, mas no mesmo instante – ordem absoluta frente a todo rol de
sortimento de ideias que teria ao longo de toda sua vida – um juízo um
tanto melhor para castigar a ousadia da amada surgiu em seu tutano.
Continuou ali, deitado sobre o piso frio da cozinha de Afaf, mas
dessa vez entre as pernas da sua esposa, vendo-lhe toda a boa fartura no
preparo das bandejas de quibe (que eram muitas).
Afaf corou, abafou o pequeno choro que fomentava, mas nem pensou
contradizer a pena que lhe impôs o marido. Envergonhada seguia a receita
a risca. Eis que, aos poucos foi cedendo o rubor e tomando conta um
bicho que cocegava as entranhas… Os olhares macios de Hassan deslizavam
sobre a pele de Afaf.
A vergonha da mulher foi se diluindo em puro encanto pela sanha do ousado algoz, seu par.
Com as mãos embebidas em canela, na boca um punhadinho de passas a
lhe adoçar a língua, Afaf suspendeu o vestido negro e se juntou em
Hassan numa de suas mais memoráveis receitas. Pena que desta feita não
se podiam tirar quitutes dignos de prova por nós, meros clientes da boa
lojinha libanesa.
Penélope Martins
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