segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Afinadí-s-s-i-m-o-S




Depois de quatro anos de namoro, oito meses de noivado, o casamento com dia marcado, oito de Março, um Domingo ainda de Inverno, dia de São João de Deus, padroeiro dos hospitais, dos enfermeiros e dos livreiros, devoção que, como se pagasse apólice, acautelava o bem-estar do corpo e da alma, para mais sua santidade oriunda de Montemor-o-Novo, santo da casa, portanto, qualidade que, para seu desgosto, se revelou defeito obrigando-a a concluir que santos da casa não fazem milagres.
Depois de a costureira lhe ter tirado por duas vezes as medidas, ter cortado e alinhavado o tecido, ter feito a primeira prova, ela de branco, branco-pérola e o metro caríssimo, dizia sobre a seda a costureira, enquanto ela sem ouvir apenas a sentir-se noiva do outro lado do espelho.
Depois de encomendar as flores na florista.
Queria jacintos, jacintos brancos, porque singelos e simples, porque quem percebe de flores sabe que significam alegria no coração.
Depois da notícia, não de página de jornal, de boca em boca, em todas as bocas, antes de chegar aos seus ouvidos, que ele ia ser pai, que havia outra, que para mais de esperanças.
No princípio nem percebeu, talvez não tivesse ouvido bem, tão difícil de perceber como na escola a demonstração matemática de um teorema.
Teorema de Pitágoras, num triângulo rectângulo, o quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos catetos.
Como se o amor um triângulo!
Arestas e vértices como lâminas!
Tudo o que sabia sobre o amor ficou devastado.
Tem de reconhecer que sabia pouco.
Depois de quarenta anos.
O tempo simplesmente passa.
Os dias da sua vida iguais, talvez mais lentos, o que os faz parecer ainda mais iguais.
Percebe que precisa de mais tempo para fazer as mesmas coisas.
No caminho para a florista, rotina das manhãs de Sábado, gasta o dobro do tempo, antes, em casa, o dobro de tempo a vestir-se, a pentear-se.
Gasta uma manhã para comprar um ramo de flores.
Gosta de flores frescas, consola-se com a tristeza de as ver murchar.
Não diz murchar, diz fenecer.
Diz fenecer porque lhe parece mais bonito dizer fenecer, apesar de serem poucos os que percebem, enquanto aos outros pouco ou nada lhes importa, que flores são coisas que de poucos dias.
Nunca mais comprou jacintos, o que deixou de a apoquentar.
O que a apoquenta é o tempo.
Demorou a perceber.
Era tão ingénua! Pensa.
Quando percebeu, o seu primeiro pensamento: o tempo quase no fim e uma pessoa a gastar o dobro do tempo em minudências, vestir as meias, calçar os sapatos, atar os cordões.
Agora usa sapatos com cordões para os prender aos pés.
Primeiro foram as semicolcheias, depois as colcheias, as notas a fugirem-lhe das mãos numa velocidade furtiva, como se um cardume de sardinhas, excessivamente velozes para os nós que agora lhe atam os dedos das mãos: artroses.
Depois que se reformou, sobra-lhe, resta-lhe, o coro da igreja.
Correcção: o coro das crianças, que do coro dos adultos também a dispensaram.
Falhas intoleráveis de ouvido, disseram.
Deve ser verdade, pensou, porque quando a notícia lhe chegou aos ouvidos foi difícil de perceber, tão difícil como na escola a demonstração matemática de um teorema.
Teorema de Ptolomeu, considerando qualquer quadrilátero inscrito numa circunferência, o produto das diagonais é igual a soma dos produtos dos lados opostos.
A vida passou, na diagonal ou do lado oposto, pensou sem saber responder ou escolher. Sempre tão indecisa!
Depois ela reformada e solteira e ainda menina. Uma menina de cabelos brancos.
Foi professora de música, professora de piano.
Se lhe perguntassem qual a sua peça preferida, diria a Polonaise de Chopin, porque cheia de semicolcheias, perfeita para contrariar dias de chuva.
Onde vive chove muito, dentro e fora do seu peito, o que é bom para o cultivo de alfaces, espinafres, grelos e nabiças.
Estar sozinha é isto, comer espinafres, ricos em ferro, na companhia da televisão.
Nunca liga a televisão, falta-lhe paciência para tanta alegria e tanto barulho.
Estar sozinha é isto, ninguém a fazer perguntas, ninguém a querer saber, apenas ela a contar, a pensar no que diria e não diz.
Depois ela reformada e solteira.
Depois ele reformado, casado, três filhos, cinco netos.
Sabe o que aconteceu na sua vida.
A vila é pequena e nunca viveu noutro lugar.
Foi ela que ensaiou o coro, os meninos, escolheu as canções, para os votos dos seus vinte e cinco anos de matrimónio, bodas de prata.
É alérgica à prata, só usa brincos de ouro, bolinhas pequenas a imitar pérolas.
Quem lhe encomendou o serviço não sabia o que tinha acontecido.
Sabia, mas não se lembrava.
Foi há tanto tempo que apenas ela tem memória, apenas ela guardou o que aconteceu.
Às vezes cruzam-se na missa de Domingo, no adro da igreja, no fim da missa.
Ele diz que gostou de a ouvir tocar, que parabéns pelo trabalho, que o coro um encanto, que os meninos afina-d-í-s-s-i-m-o-s.
Como se não se lembrasse do que aconteceu.
Será que não se lembra?
E afina-d-í-s-s-i-m-o-s!, repete para si mentalmente, quando o mais bonito é que uns tantos, quase todos, não conseguem seguir a linha melódica.
E conclui que o ouvido dele sem dúvida num estado intolerável pelo que devia marcar uma consulta no otorrino.
O que pensa e não diz, porque a solidão é isto e porque não lhe guarda amor.

Raquel Serejo Martins

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