A memória
O Nelson Mandela está a perder a memória e não vai lembrar-se nunca mais de que é um homem sagrado. Morrerá anónimo para si mesmo, indiferente ao mundo e ao quanto ajudou cada um de nós. Vai desconhecer como foi perseverante, como conquistou a lucidez, não vai saber da sua inteligência superior ou da magnitude da sua beleza.
Leio a notícia enquanto atravesso uma extensa sala de casino em Macau. A alcatifa florida engana o chão. Julga o chão que é perfumado, que vive de alguma forma, que sonha. Pousam as mesas e as cadeiras onde os homens obstinados agem automaticamente, como máquinas de estender e recolher fichas. Ausentes. Sem nada dentro. Penso que estou num lugar com corpos sem nada dentro e que o Nelson Mandela ficará assim, ausente, uma máquina de si mesmo apenas para respirar mais um tempo, até não respirar.
Faltava comover-me em Macau, se é verdade que me ando a comover nas terras todas. Passei de olhos no jardim do chão, a fazer de conta que o jardim se levantava e que punha o mundo bonito para que a minha tristeza fosse acudida pela sensibilidade que nos inspiram as coisas bonitas, as coisas vivas. Queria que a vida aparente fosse efectiva. Que a vida se inventasse por um desenho, se criasse pela semelhança.
Somos todos ainda feitos dos mais absurdos preconceitos. Ainda vamos na primária quanto ao respeito e à aceitação. Somos horríveis para as diferenças, os diferentes, sem entendermos que para sermos iguais disfarçamos tudo, para parecermos iguais. Somos contra os gordos e os feios, os sensíveis e as mulheres, somos contra os pretos, os amarelos e os vermelhos, os de olhos em bico, os morenos, os muito brancos, as loiras, as crianças, os funcionários do McDonalds. Somos contra toda a gente. Metemos nojo.
Eu queria ser merecedor do Nelson Mandela. Queria que, se algum dia me tivesse visto, pudesse achar-me imperfeito sem tragédia. Apenas imperfeito e muita vontade de chegar onde ele chegou: ao lugar puro de sentir, de pensar. O lugar puro de se ser. Quem se objectiva por menos, pensa mal da oportunidade de viver.
Quando as notícias vierem dizer que o Nelson Mandela já não sabe quem é, tenhamos a fortuna de lho dizer e de o dizer a toda a gente e para sempre. Quem não tiver a fortuna de saber acerca do Nelson Mandela anda vazio dos bolsos da alma. Tem muito menos hipóteses de se engrandecer à altura da incrível ocasião de existir. Penso assim, que são homens como ele que apontam o quanto é incrível existir. O resto pode ser apenas aparente. Um casino de flores falsas e gente perdida para dentro da sua própria couraça.
Casa de Papel, crónica
Valter Hugo Mãe
revista 2, jornal Público, domingo, 24 de março de 2013
fantástico!uma epopeia sobre as discriminações actuais.
ResponderEliminarGostei do texto, apenas a frase "metemos nojo" me deixou estupefacto. Penso que cada um deve falar por si. Disse!
ResponderEliminarSinceramente não reconheço este mundo que o Valter Hugo Mãe descreve. Uma perspectiva muito negativa e carregada de ódio da nossa sociedade. Mandela nunca teve um discurso odioso mas sempre conciliador (mesmo quado esteve preso).
ResponderEliminarMandela sempre teve esperança e grandes expectativas pelo ser humano.
Paulo
Paulo, Vitor Hugo falava dos homens e não do mundo. Os homens que roubam a saúde das crianças etc...
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