segunda-feira, 17 de junho de 2013

Que uma AranhA FaZzz muita companhiA


- Era capaz de matar a minha aranha de estimação.
Sim, foi o que lhe respondi.
A teia da aranha no tecto. A aranha na teia.
Ela deitada ao meu lado.
Foi o que respondi depois de um fim de tarde-noite que foi de sexo, com um não sei quê de ternura.
E não foi ternura.
Foi necessidade.
Foi necessidade e urgência.
Foi uma tarde de Domingo.
As tardes de Domingo são tramadas, o tédio das tardes de Domingos, os filmes na televisão, os passeios, um jardim, uma praia, de preferência de carro, com sorte uma fila de trânsito, as famílias em digestão do almoço de Domingo, de sobremesa temos mousse, pudim, doce da avó, de qual avó?, não da minha que se finou antes de eu ter nascido, e mais leite-creme e arroz-doce, as famílias de banho tomado, o banho de Domingo, os sapatos engraxados, a roupa de ver a Deus ou de mostrar aos outros, os programas na rádio, a volta a Portugal em bicicleta, a fórmula 1, o futebol, a cerveja, os amendoins, o whisky, quando a cerveja se mostra insuficiente para suportar as horas. É que nas tardes de Domingo até os bons romances me provocam azia.
A chaleira ao lume, uma chávena de chá. A acompanhar o chá duas bolachinhas.
Até que, para alívio de muitos, a infindável tarde Domingo termina finalmente, nos ponteiros do relógio de pulso, do micro-ondas, do vídeo, da televisão, do despertador na mesinha de cabeceira.
Falta atravessar a noite, mais fácil, mais leve, porque de noite todos os gatos são pardos.
Foi uma tarde de Domingo.
Não me serve de desculpa.
Foi porque eu estou sozinho há algum tempo.
17 anos.
Engordei levemente.
20 kilos.
E ela, talvez a pensar, não que podíamos ser felizes, porque até o cinismo tem limites, mas que podíamos, talvez, se quiséssemos, com um pouco de vontade, de boa vontade, de vontade boa, aliviar um ao outro o peso da solidão, pragmática; como só as mulheres sabem ser, a perguntar o que era capaz de fazer por si.
Eu podia ter respondido que um chá, que um poema, que lavar a loiça, no limite dos limites, que podia aprender tricot e tricotar-lhe um cachecol, que qual a sua cor preferida?, que um bolo de chocolate, um bolo de chocolate vai bem contudo.
Mas, porque nunca fiz um bolo de chocolate, porque duvido que conseguisse fazer um bolo de chocolate, eu a responder:
- Era capaz de matar a minha aranha de estimação.
Ela a rir do meu comentário, a achar graça ao meu sentido de humor, longe de supor que no quarto, a fazer-nos companhia, a teia e a aranha.
Mais vale cair em graça do que ser engraçado, dizem.
Acho que nunca encontrei um feio engraçado, digo.
Os feios não caem. Os feios não se levantam.
Gostei de a ouvir rir. Um riso redondo e melódico, bom de ouvir.
Há risos que me irritam, principalmente os que lembram carros estrangulados em primeira, quando a situação do mínimo pede uma terceira.
O seu riso não irritava. Fazia sorrir. Fazia rir. Um não sei quê de alegria.
Há muito tempo que não se ouvia rir dentro do quarto, até para as paredes deve ser agradável.
Ela a rir da minha resposta, eu sem saber o que mais fazer.
Desviar-lhe os olhos do tecto?
A minha mão no seu queixo como se uma ternura, antes que percebesse a existência da teia e da aranha!
Chama-se Genoveva.
Chamo-lhe Genoveva, gosto de saber com quem estou a falar e, por dia, no mínimo, digo-lhe bom dia quando acordo e boa noite quando me deito.
No Verão tem a delicadeza de comer as moscas que me entram no quarto.
E se há bicho que incomoda o sono de um gajo são as moscas, zzzzzz, zzzzzzzz, zzzzzzzzzz!
E os mosquitos.
E as melgas.
Essa tropa!
Assim que quando me perguntou o que fazia, pensei duas vezes, pensei três, o que para mim já é muito pensar, tivesse eu pensado três vezes antes de me casar e continuava solteiro, e conclui que não, que não era capaz de matar a minha aranha de estimação.
Menti, por graça e sem pensar, quando respondi: Por ti matava a Genoveva.
E claro que não disse Genoveva, disse a minha aranha de estimação, que não sou tolo para me mostrar assim, mas depois do pequeno-almoço, torradas com doce de laranja e chá, nunca me falta chá na despensa, são demasiadas as coisas que me provocam azia, diga-se de passagem, que nunca tenho em falta nem chá nem cerveja, não vão ficar a pensar o que não devem, saímos para tomar café, ela disse tinha coisas para fazer, eu passei a tarde na esplanada a ler o jornal, uma tarde de Inverno em que o sol vale pelo menos o dobro do Verão, e não lhe telefonei mais, nem atendi o telefone, claro, claro-escuro, escuro.
 
Raquel Serejo Martins
 




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