- Era capaz de matar a minha
aranha de estimação.
Sim, foi o que lhe respondi.
A teia da aranha no tecto. A
aranha na teia.
Ela deitada ao meu lado.
Foi o que respondi depois de
um fim de tarde-noite que foi de sexo, com um não sei quê de ternura.
E não foi ternura.
Foi necessidade.
Foi necessidade e urgência.
Foi uma tarde de Domingo.
As tardes de Domingo são
tramadas, o tédio das tardes de Domingos, os filmes na televisão, os passeios,
um jardim, uma praia, de preferência de carro, com sorte uma fila de trânsito,
as famílias em digestão do almoço de Domingo, de sobremesa temos mousse, pudim,
doce da avó, de qual avó?, não da minha que se finou antes de eu ter nascido, e
mais leite-creme e arroz-doce, as famílias de banho tomado, o banho de Domingo,
os sapatos engraxados, a roupa de ver a Deus ou de mostrar aos outros, os
programas na rádio, a volta a Portugal em bicicleta, a fórmula 1, o futebol, a
cerveja, os amendoins, o whisky, quando a cerveja se mostra insuficiente para
suportar as horas. É que nas tardes de Domingo até os bons romances me provocam
azia.
A chaleira ao lume, uma chávena
de chá. A acompanhar o chá duas bolachinhas.
Até que, para alívio de
muitos, a infindável tarde Domingo termina finalmente, nos ponteiros do relógio
de pulso, do micro-ondas, do vídeo, da televisão, do despertador na mesinha de
cabeceira.
Falta atravessar a noite,
mais fácil, mais leve, porque de noite todos os gatos são pardos.
Foi uma tarde de Domingo.
Não me serve de desculpa.
Foi porque eu estou sozinho há
algum tempo.
17 anos.
Engordei levemente.
20 kilos.
E ela, talvez a pensar, não
que podíamos ser felizes, porque até o cinismo tem limites, mas que podíamos,
talvez, se quiséssemos, com um pouco de vontade, de boa vontade, de vontade
boa, aliviar um ao outro o peso da solidão, pragmática; como só as mulheres
sabem ser, a perguntar o que era capaz de fazer por si.
Eu podia ter respondido que
um chá, que um poema, que lavar a loiça, no limite dos limites, que podia
aprender tricot e tricotar-lhe um cachecol, que qual a sua cor preferida?, que
um bolo de chocolate, um bolo de chocolate vai bem contudo.
Mas, porque nunca fiz um bolo
de chocolate, porque duvido que conseguisse fazer um bolo de chocolate, eu a
responder:
- Era capaz de matar a minha
aranha de estimação.
Ela a rir do meu comentário,
a achar graça ao meu sentido de humor, longe de supor que no quarto, a
fazer-nos companhia, a teia e a aranha.
Mais vale cair em graça do
que ser engraçado, dizem.
Acho que nunca encontrei um
feio engraçado, digo.
Os feios não caem. Os feios não
se levantam.
Gostei de a ouvir rir. Um
riso redondo e melódico, bom de ouvir.
Há risos que me irritam,
principalmente os que lembram carros estrangulados em primeira, quando a situação
do mínimo pede uma terceira.
O seu riso não irritava.
Fazia sorrir. Fazia rir. Um não sei quê de alegria.
Há muito tempo que não se
ouvia rir dentro do quarto, até para as paredes deve ser agradável.
Ela a rir da minha resposta,
eu sem saber o que mais fazer.
Desviar-lhe os olhos do tecto?
A minha mão no seu queixo
como se uma ternura, antes que percebesse a existência da teia e da aranha!
Chama-se Genoveva.
Chamo-lhe Genoveva, gosto de
saber com quem estou a falar e, por dia, no mínimo, digo-lhe bom dia quando
acordo e boa noite quando me deito.
No Verão tem a delicadeza de
comer as moscas que me entram no quarto.
E se há bicho que incomoda o
sono de um gajo são as moscas, zzzzzz, zzzzzzzz, zzzzzzzzzz!
E os mosquitos.
E as melgas.
Essa tropa!
Assim que quando me perguntou
o que fazia, pensei duas vezes, pensei três, o que para mim já é muito pensar,
tivesse eu pensado três vezes antes de me casar e continuava solteiro, e
conclui que não, que não era capaz de matar a minha aranha de estimação.
Menti, por graça e sem
pensar, quando respondi: Por ti matava a Genoveva.
E claro que não disse
Genoveva, disse a minha aranha de estimação, que não sou tolo para me mostrar
assim, mas depois do pequeno-almoço, torradas com doce de laranja e chá, nunca
me falta chá na despensa, são demasiadas as coisas que me provocam azia,
diga-se de passagem, que nunca tenho em falta nem chá nem cerveja, não vão
ficar a pensar o que não devem, saímos para tomar café, ela disse tinha coisas
para fazer, eu passei a tarde na esplanada a ler o jornal, uma tarde de Inverno
em que o sol vale pelo menos o dobro do Verão, e não lhe telefonei mais, nem
atendi o telefone, claro, claro-escuro, escuro.
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