terça-feira, 11 de junho de 2013

É do borogodó: Machado de Assis e a mosca azul

Na minha adolescência não gostei muito de Machado de Assis, com exceção das "Memórias Póstumas de Brás Cubas", obra para a qual qualquer mente se rende, quer pela imaginação absurdamente fantástica do autor, quer pelo morto que é mesmo muito vivo na história. Redescobri Machado de Assis bem crescida. Nos contos de “O Medalhão”, encontrei uma ironia perspicaz na revelação do comportamento humano.

Costumo dizer que não importa a capacidade de ler dez, cem ou mil livros, se (e eu digo SE “maiscularmente”, perdoem aqui o neologismo necessário) o leitor não conversa com as linhas, não diz palavras em voz alta, não traz para si, não sente fundo, não torna viva aquela reflexão. Basta ler um verso para desabar um mundo. Um poema pode fazer nascer um novo universo.

Parece que Machado de Assis é um caso típico de alguém que se deixou envolver seriamente com as palavras. De família pobre, o carioca nascido aos 21 de junho de 1839, mal frequentou a escola pública, mas desenvolveu uma literatura com todos os géneros: poesia, conto, crónica, ensaio, romance, dramaturgia, Machado de Assis passou por ministérios, fundou a Academia Brasileira de Letras e foi seu primeiro presidente, eleito por unanimidade.

No meu caso, desde que o poema “A Mosca Azul” zuniu aos meus ouvidos sou toda amorosa pelo legado de Machado de Assis. O poema que, antes é fantasia, alcança maravilhamento e também disseca a natureza humana.

Quem de nós já não se viu como poleá deslumbrado com a beleza, o mistério, a raridade, o valor, o esplendor. Instrumentos de graça aguçam a paixão, mas terminam por se transformar em desejo de posse que fatalmente deságua em brutalidade.

O poema de Machado de Assis vê o mundo e também vê por dentro da gente; já o amor não carece de deslumbramento, nem quem ama se investe com ganas de possuidor. Viver a maravilha de deixar viver.

Pequena observação talvez pertinente para alguns: poleá é o homem sem origem nobre, o plebeu, o João ninguém. Ironicamente no poema o poleá vira Rei e, investido de nobreza, pode tudo possuir. Aconselho leitura minuciosa, lendo e relendo, em voz alta para que as paredes possam guardar um pouco do som e a mosca azul, esteja onde estiver, possa perdoar nossa ganância.

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ElIORPS4vFA

"Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão.
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada.
Em certa noite de verão.

E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.

Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
— “Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que te ensinou?”

Então ela, voando e revoando, disse:
— “Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor”.

E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo
E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.

Entre as asas do inseto a voltear no espaço,
Uma coisa me pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço,
Eu vi um rosto que era o seu.

Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vixnu.

Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.

Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios.
Voluptuosamente nus.

Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.

Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.

Então ele, estendendo a mão calosa e tosca.
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.

Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.

Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.

Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.

Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful
Dizem que ensandeceu e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.
"

de Machado de Assis

Um site do Governo Brasileiro disponibiliza informações e a obra completa de Machado de Assis. O link é http://machado.mec.gov.br/.

Penélope Martins

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