terça-feira, 14 de maio de 2013

É do borogodó: eu, leitora


Interessei-me por livros não sei bem quando.
Minha avó materna me contava histórias do passado, tecia peças lindas com suas agulhas mágicas (tão rápidas, tão rápidas), trançava meus cabelos dourados e prendia no alto da cabeça, o vestido florido em veludo virava manto, eu me transformava em princesa. Vovó brincava comigo conversando, avental, colher de pau, laranjas descascadas no quintal.

Também havia o ritual samba e violão, batuques em caixinhas de fósforos: minha família cantando Vinicius, Benito de Paula, Gonzaga, Novos Baianos, Lamartine Babo, Jackson do Pandeiro. Pareciam-me vizinhos de bairro todos aqueles compositores. Comecei a ler os encartes dos discos de vinil desde sempre. A professora do primeiro ano primário se encantava quando eu escrevia um pequeno texto, eu já vinha alfabetizada do jardim de infância, conversadeira mais do que qualquer outra coisa e ritmada pelos almoços da família. Já no segundo ano primário, a professora era dona de uma pequena livraria pertinho da escola.

Passava uns momentos na livraria antes de ir para casa. A professora admirava meu interesse, permitia que eu lesse todos os livros que quisesse e, junto comigo, revisitava as histórias. Imprescindível descrever que tudo acontecia ao mesmo tempo, inclusive a casa portuguesa da família paterna. Meu avô, um grande pescador e contador de histórias, contava detalhes daquele país que ele havia deixado por força da falta de liberdade (e as bocas dos sete filhos que ele teria que alimentar mesmo quando a polícia lhe levava para longe dos miúdos). As tias ensolaravam minha vida. A mais velha coloria a cozinha com pasteis, ensopados, tortas e pudins. A mais nova ouvia comigo os discos de Caetano e dizia: “um dia tu compreenderás a poesia dele melhor do que eu”. Isso não aconteceria nunca, melhor ser dito aqui, mas continuei fã do tipo incondicional.

E de onde vieram os livros? Acho que das múltiplas palavras que me habitavam: agulhas de tricot, banhos de rio, óculos redondos, casca de laranja, calça boca de sino, balanço, o peixe, cana-de-açúcar, as vozes do “eu sei que vou te amar”, banhos de mangueira, dicionário, camarão, estalo dos dedos, dançar o vira. Todas as linguagens brincavam histórias nos meus ouvidos, criavam imagens para meus olhos e formavam em mim o espírito da eterna curiosidade.
Imagino que tenha sido algo assim meu primeiro interesse por livros.
Nem interessa, mas depois de crescida graduada em Direito, acabei despencando no curso de Filosofia e minha cabeça explodiu. Bum. O tempo me pareceu tão feroz e eu lá vivendo os saltos altos dos escritórios sem me dar conta que mais me importavam as histórias. Por isso resolvi voltar ao começo, escrever histórias e colecionar tantas quantas eu pudesse sem importar a forma.
Coleciono histórias contadas, algumas fragmentadas, histórias de antepassados, invenções de crianças, poesia dos dias e recupero canções. Coleciono histórias para inventar as minhas memórias.

Coloquei tudo no balaio e tudo é do borogodó, só por isso compartilho (borogodó só é borogodó por fazer valer o compartilhamento). Para quem não sabe, borogodó é atração irresistível, algo mais do que charme e beleza, um quê de simpatia instantânea, aquilo que não tem causa fisiológica nem definição certa, mas que provoca interesse imediato como num clique, todos boquiabertos.
O que é do borogodó eu compartilho na sala virtual do “Toda Hora Tem História”, uma extensão da minha sala de casa, onde os livros espalhados se misturam com discos, filmes, cheiro de café, acordes do violão, risadas de crianças e brinquedos pequeninos colecionáveis (como os marcadores de livros e as bonecas de pano). Histórias.
Afinal era a menina, picada pelo bicho da eterna curiosidade, quem desde muito cedo me habitava, quem desde muito cedo aprendeu a ler o livro do quotidiano.

2 comentários:

  1. Acho que posso dizer que, para mim, um livro também é um objecto do borogodó! Adorei...

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  2. Tua cabeça enfeitada de idéias, tem com certeza, muito borogodó!

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