domingo, 7 de abril de 2013

SamuT


Fotografia de Teresa Lamas Serra

Não me perguntes o nome, quantos anos tenho, se gosto de estudar, se gosto de tâmaras, se tenho um cão.
Não me faças perguntas ridículas.
Espero mais de ti.
Não espero nada de ti.
Não desvies os teus olhos dos meus pés descalços.
Tenho sapatos.
Tenho sapatos e tenho a alegria de andar com os pés descalços.
Tenho uma bicicleta. Foi prenda de anos.
Uma bicicleta tem uma utilidade relativa no deserto, utilidade nenhuma, mas na cidade voa como um pássaro.
Um pássaro a planar rente ao chão.
Consegues imaginar?
O meu avô diz que a mim me sobra imaginação.
A minha bicicleta é inútil no deserto, porque os desertos não são lugares próprios para pássaros, talvez a ausência de árvores, de ninhos, de sombras.
Eu, tu, nós, temos um não sei quê de bicicleta, e não é como se tivéssemos rodinhas nos pés, que isso é mais patins, eu sei, o que eu quero dizer é que servimos para pouco, também somos inúteis em muitos lugares.
Só no fim é que percebemos que são poucos os lugares certos, é o que diz o meu avô, e também diz que eu ainda não sei nada, porque estou apenas no princípio de tudo.
Certos para quê, avô?
Certos para se ser feliz.
Já tenho oito anos.
Já soprei oito velas.
Um bolo de figos e mel, uma bicicleta.
Já andaste de camelo?
Tem um não sei quê de barco.
O que é o quê?
Não sei, nunca andei de barco.
Um barco também é inútil no deserto.
Gosto de barcos, principalmente das caravelas, as velas como luas em quarto crescente, como nos livros de história, gosto tanto, que quando sopra o vento penso que sou, quer dizer, imagino que sou, de braços abertos, um barco à vela, mas acabo a fazer lembrar um avião, deve ser do vento!
No deserto o vento é muito forte, tão forte que move montanhas. Já reparaste que não há montanhas no deserto.
Portanto, não sirvo para barco.
A serventia de uma pessoa está na cabeça, nas mãos, nos pés ou no sorriso, outra frase que o meu avô repete para eu aprender, enquanto enfia o dedo indicador na minha testa, o mesmo dedo que depois aponta para as minhas mãos, para os meus pés, para o seu sorriso, e faz assim apesar de dizer que apontar é feio.
E porque já experimentei, sei que sou inútil com um bisturi na mão, com um pincel, com um cinzel, com uma agulha, mesmo com dedal pico-me nos dedos.
Acho que sou, espero ser útil com uma colher de pau na mão, e não estou a falar em lutas de espadas, que assim já parti quatro colheres, quatro valentes mosquetes que o meu pai me atestou com os nós dos dedos da não direita, mesmo para doer, como se o meu cocuruto uma noz.
O meu pai é cozinheiro. O meu avô é cozinheiro.
Dizem que o meu bisavô também era cozinheiro.
Quase nasci dentro de uma cozinha e, numa cozinha gosto de tudo, dos cheiros às panelas e tachos, aos livros de cozinha, as fotografias das sobremesas como histórias de encantar a fazer crescer água na boca.
Já consigo partir um ovo e separar a gema da clara, só com uma mão.
Para dizer mesmo a verdade não gosto de tudo numa cozinha, não gosto de lavar loiça, o pior é que é a única coisa que me deixam fazer, dizem que ainda não tenho idade para mexer no fogo.
Irritam-me mesmo, e mais me irritam porque parece que têm gosto em ver-me contrariado, porque todos os dias me põem a lavar pratos e copos e colheres de garfos.
Lavar garfos, o que detesto mais.
Mas o que mais, demais, me irrita é que na cozinha, quieta, silenciosa, ociosa, de olhos nas minhas costas, de sorriso trocista, a máquina de lavar loiça.


Raquel Serejo Martins


NOTA: Este texto nasceu sobre este olhar que me encantou, sobre a fotografia de Teresa Lamas Serra, que trouxe este olhar até aos meus olhos, até aos vossos olhos.


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