sexta-feira, 19 de abril de 2013

Palavras caras - por Manuel Monteiro

Palavras Caras

O debate é antigo.

Deve o escritor utilizar palavras consabidas ou revitalizar palavras menos conhecidas? Certo é que grandes monstros literários habitam os dois paradigmas, tornando a discussão permanentemente renovável.

Um dos metadiálogos literários sobre o tema pertence a Faulkner e a Hemingway.

He [Ernest Hemingway] has never been known to use a word that might send a reader to the dictionary.

Poor Faulkner. Does he really think big emotions come from big words? He thinks I don't know the ten-dollar words. I know them all right. But there are older and simpler and better words, and those are the ones I use.

Um dos princípios do jornalismo é o de que entre dois sinónimos a opção do escrevente deverá recair no sinónimo mais comummente utilizado, de modo que o público seja o maior possível. Bem sei que literatura e jornalismo são coisas bem distintas, mas, feliz ou infelizmente, muitos jornalistas migram para a ficção transportando essa ideia.

É verdade que a leitura de um texto com palavras caras é menos fluida. Ou o leitor pura e simplesmente ignora tais palavras e não vai ao dicionário, deixando zonas brancas na compreensão do texto (a adivinhação pelo contexto é, regra geral, um embuste), ou pega no dicionário ante cada palavra que desconhece ou consulta-o depois de sublinhar um conjunto de palavras na obra. A quebra da fluidez pode afastar leitores, mas não deixa de ser um argumento vicioso – a fluidez do entendimento aumenta na proporção directa do estudo de textos em que tropeçamos mais vezes. Quanto mais lemos, quantas mais palavras caras consultamos nos dicionários, menos vezes temos de o fazer. Percebemos isto facilmente quando nos iniciamos no estudo de uma língua estrangeira. Era o próprio Lenine que afirmava que não era a arte que devia descer ao povo, mas o povo que devia ascender à arte.

Para Borges, uma palavra cara num texto era como um borrão de tinta – qualquer coisa que encadeava a vista e que nos fazia reparar mais na palavra do que na perspectiva global da página, do capítulo ou da obra. Não duvido de que muitos autores, mormente numa fase imatura da sua escrita, procuram despejar uma torrente de palavras caras (muitas vezes encaixadas forçadamente) para exibir uma putativa erudição. O narcisismo, a sensação de vaidade do conhecimento de algo partilhado por muito poucos, o poder de mandar o leitor fazer uma leitura intertextual (de que a ida ao dicionário é o exemplo mais corriqueiro) se quiser compreender a sua obra podem ser móbeis de muitos escritores na senda de Aquilino.

Mas convém lembrar que vivemos tempos em que o léxico utilizado (na televisão, na imprensa, na comunicação das novas tecnologias de informação, nos próprios livros) é cada vez mais reduzido. George Steiner afirmou que «Shakespeare usava 24 mil palavras. Num estudo muito recente, pela companhia telefónica americana Bell, o total de palavras usadas por 90 por cento dos americanos ao telefone é de 150 palavras». James Joyce recorreu a mais de 30 mil palavras em Ulisses.Vasco Pulido Valente escreveu que quando se dedicou a ler a obra inteira de Camilo verificou que muitas palavras não estavam em dicionário algum. Porquê? Porque um dicionário é um registo, um espelho das palavras usadas pelos escreventes e pelos falantes. Não utilizar determinadas palavras é aniquilá-las, é contribuir para a sua expulsão da língua.

Aqui, entramos num ponto essencial. Qual o problema de as palavras irem morrendo? Não é verdade que umas entram e outras saem? Porque devemos a todo o custo tentar preservar palavras que ninguém conhece? Porque quanto mais palavras temos cá dentro, mais chaves de decifração do mundo e do humano possuímos. Não só isso. Mesmo quem não defende a tese de que não há sinónimos perfeitos e de que portanto cada palavra, pelo seu étimo, pela sua conotação, transporta um significado único; mesmo quem não subscreve tal ideia concordará que o escritor munido de mais palavras dispõe de mais instrumentos para trabalhar a plasticidade, a beleza e a musicalidade da língua.

Um acrescento importante. Não são apenas as palavras que morrem pela falta de uso. Determinados significados associados às palavras morrem quando deixam de ser empregados (quando consultamos um dicionário, percebemos que as palavras são quase todas muito mais polissémicas do que julgamos). As almas mundas de Camões remetem-nos para um adjectivo extinto – mundo enquanto oposto de imundo. É essa a preocupação expressa por Orwell no final de 1984, quando a novilíngua mantinha a palavra «livre», mas já não aplicável a homens livres, permanecendo apenas para frases como: «O cão está livre de pulgas.»

Termino com uma confissão. Uma das coisas que mais me alimentam o espírito, provocando aquele preenchimento interior que é a satisfação intelectual, é o de conhecer uma palavra nova todos os dias. É o tipo de contentamento que não envelhece nem se embota – uma delícia no corpo que não consigo transmitir em palavras.

Eis algumas. (Fonte: Houaiss.)

vulpino Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1840-1871 cf. SilCas
Cada um dos sentidos de uma palavra
n adjetivo
1    relativo a ou próprio de raposa; raposino
Ex.:


2    (1881)Derivação: sentido figurado.
     hábil com ardis; ardiloso, astuto, raposeiro, raposino, traiçoeiro
Ex.: vendedor v. 


metuendo Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1690 cf. Alma
Cada um dos sentidos de uma palavra
n adjetivo
Uso: formal.
que causa temor, que mete medo


talássico Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1877 cf. MS7
Cada um dos sentidos de uma palavra
n adjetivo
1    relativo ao mar e às águas oceânicas profundas
2    
Uso: formal.
     da cor do mar
Ex.: azul t. 

pusilanimidade Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação sXV cf. FichIVPM
Cada um dos sentidos de uma palavra
n substantivo feminino
1    característica ou condição do que é pusilânime
2    fraqueza de ânimo, falta de energia, de firmeza, de decisão
3    medo, covardia

queimor Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1858 cf. MS6Ortoépiaô
Cada um dos sentidos de uma palavra
n substantivo masculino
1    sabor muito picante; ardência, queimo
Ex.: o q. da pimenta-malagueta
2    
Derivação: por metáfora.
     estado de sobreexcitação, de arrebatamento; exaltação
Ex.: o q. dos ânimos
3    Derivação: por extensão de sentido.
     forte perturbação; ardor
Ex.: o q. das paixões
4    Derivação: por extensão de sentido.
     quentura febril
Ex.: o q. do corpo
5    calor intenso


pudicícia Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1540 cf. JBarV
Cada um dos sentidos de uma palavra
n substantivo feminino
1    qualidade do que é casto; castidade, pureza
2    característica do que é pudico, tímido, recatado
Ex.: a p. do primeiro amor
3    m.q. 
pudor


femeeiro Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1858 cf. MS6
Cada um dos sentidos de uma palavra
n adjetivo e substantivo masculino
1    diz-se de ou macho que busca incessantemente a fêmea
Ex.: <é um f., vive atrás da fêmea>
2    
Regionalismo: Brasil.
     diz-se de ou reprodutor (touro ou garanhão) cujas crias são, na maioria, fêmeas
3    m.q. 
mulherengo ('dado a mulheres')
n adjetivo
Regionalismo: Minho.
4    m.q. 
fêmeo (vitic)
n substantivo masculino
5    reunião de meretrizes; femeaço


justafluvial Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1899 cf. CF1
Cada um dos sentidos de uma palavra
n adjetivo de dois gêneros
que está nas imediações ou junto de um rio; marginal, ribeirinho

deletério Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1713 cf. RB

Cada um dos sentidos de uma palavra
n adjetivo
1    que é prejudicial à saúde; insalubre
2    
Derivação: por extensão de sentido.
     que possui um efeito destrutivo; danoso, nocivo
3    
Derivação: sentido figurado.
     que conduz à imoralidade, à corrupção; degradante
4    
Rubrica: genética.
     cujo fenótipo é prejudicial para o organismo (diz-se de gene)

malsão Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação a1587 cf. APP
Cada um dos sentidos de uma palavra
n adjetivo
1    de saúde precária; que não se curou de todo, em mau estado
Ex.:
2    
(1600)
     nocivo à saúde; insalubre, doentio
Ex.: o ar m. que se respira junto aos pântanos
3    Derivação: sentido figurado.
     que denota uma perversidade intelectual ou moral; mórbido
Ex.: curiosidade m.
4    Derivação: sentido figurado.
     que ameaça o equilíbrio intelectual, moral; nocivo, maléfico
Ex.: leitura m. 

1mormacento Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1716 cf. RB
Cada um dos sentidos de uma palavra
n adjetivo
em que há mormaço
Ex.: dia m. 

mormaço Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1716 cf. RB
Cada um dos sentidos de uma palavra
n substantivo masculino
1    neblina quente e úmida, resultante de forte calor
2    temperatura abafada, quente
3    
Regionalismo: Brasil. Uso: informal.
     indivíduo impertinente, aborrecido
4    
Regionalismo: Pernambuco. Uso: informal.
     m.q. namoro ('ato', 'relação')


feérico Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1899 cf. CF1
Cada um dos sentidos de uma palavra
n adjetivo
1    pertencente ao mundo da fantasia; mágico
2    que revela suntuosidade; luxuoso, fastuoso, deslumbrante
Ex.: decoração f.
3    que turva a vista por excesso de luz ou brilho; deslumbrante, ofuscante
Ex.: iluminação f. 

empíreo Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação sXIV cf. FichIVPM
Cada um dos sentidos de uma palavra
n substantivo masculino
1    
Rubrica: mitologia.
     lugar em que moram os deuses
2    
Rubrica: teologia.
     lugar reservado aos santos e bem-aventurados; o céu
n adjetivo
3    relativo ao céu; celestial
4    que está acima de tudo; supremo


adâmico Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1871 cf. DV
Cada um dos sentidos de uma palavra
n adjetivo
1    
Rubrica: religião.
     relativo a Adão, o primeiro homem, segundo a Bíblia
2    
Derivação: por extensão de sentido.
     relativo à primitiva raça humana
3    
Derivação: por extensão de sentido.
     que é primitivo


imarcescível Datação: Referência bibliográfica da fonte de datação 1680 cf. LacSJ
Cada um dos sentidos de uma palavra
n adjetivo de dois gêneros
1    que não perde o viço, o frescor
Ex.: flor i.
2    
Derivação: sentido figurado.
     impossível de corromper; incorruptível, inalterável

 Manuel Monteiro

1 comentário:

  1. Palavras novas, sempre, para reforçar as ideias e ganhar novos impulsos na linguagem.
    Achei o artigo... TANTALIZANTE (de Tântalo).
    Tantalizante.... - Espicaçar ou atormentar com alguma coisa que, apresentada à vista, excite o desejo de possuí-la, frustrando-se este desejo continuamente por se manter o objeto dele fora de alcance, à maneira do suplício de Tântalo (v. tantálico1).
    Provocar desejos irrealizáveis em. - José Alberto Braga

    ResponderEliminar