Se te perdoasse não saberia o que escrever.
E não sei o que escrever.
São demasiadas as coisas sobre as quais não podemos ou não
devemos falar.
Sei que tenho saudade.
Uma saudade.
Eu ia a dizer imensa.
Mas não lhe sei o tamanho.
Da parte em ti que gosta de mim.
Em bom rigor.
Da parte em ti que acho que gosta de mim.
Contigo, o exercício da dúvida serve de salva-vidas.
A mim salvou-me a vida!
Está a chover.
Estou neste país há quase três anos e pela primeira vez
vejo chover.
Acho que choveu antes mas eu não vi chover.
Agora duvido de tudo, fizeste-me assim.
Uma vez, os factos: o chão molhado, as árvores carregadas
de água, as vidraças das janelas crivadas de gotas de água, como se um soldado
com uma metralhadora quisesse tomar a casa de assalto.
Fui descalça até à praia.
Agora vivo perto do mar.
O cão feliz ao meu lado.
Agora tenho um cão.
Coloquei a hipótese de lhe dar o teu nome. Por graça,
sabes, do tipo é tão feio que é bonito, mas percebi de imediato que o paradoxo não
teria qualquer graça, apesar de ser um bicho silencioso, companheiro e fiel.
Decidi chamar-lhe Fígaro porque tenho que o tosquiar com
frequência, percebes a graça, o paradoxo?
Não sei porque te conto estas coisas.
Coisas comezinhas.
Escrevo, talvez, porque está a chover.
É a primeira vez que chove.
É a primeira vez que escrevo.
Como se causa e consequência, talvez.
Parece-me que o jogo era verdade ou consequência, mas não
importa.
Sinto a minha mão torpe, a caneta sem posição na mão.
Ao contrário, a mão sem posição para a caneta.
A minha letra sem a forma perfeita da minha letra.
Sem a forma imperfeita da minha letra.
Uma evidente inclinação para a esquerda, como se um vento
de oriente, constante, morno, as palavras em deleite, como se girassóis, como
se em espreguiçadeiras alinhadas na areia da praia.
Uma imperfeição que exasperava a minha professora
primária.
A D. Deolinda, como Quixote, a combater, não moinhos, mas ventos,
à base de toques de varinha, não mágica, concreta cana-da-índia, no meu
cocuruto.
Um dia de audácia fermentada e premeditada, partimos a
varinha.
Não foi fácil, apresentou uma rigidez que nos surpreendeu,
que não nos devia ter surpreendido, pois era do conhecimento de todas as
moleirinhas.
A varinha partida em três.
A D. Deolinda, incomodadíssima, olhou para meia dúzia de
nós, os suspeitos do costume, nós olhámos para os sapatos, nos meus pés uns
sapatos castanhos de atacadores, os laços quase desfeitos, nitidamente a
precisarem de ser engraxados.
E dois dias depois outra varinha, que fazia o mesmo
serviço igual de bem.
Parou de chover.
Sem chuva não tenho motivos para escrever.
Como se causa e consequência, talvez, como se verdade
apenas.
Até o tamanho da saudade encolheu, mirrou, como o que faz
a água em centrifugação nas máquinas de lavar às camisolas de lã. Encolhem,
deixam de servir ao corpo, as mangas não pelos punhos, pelos cotovelos, a
bainha pelo umbigo, ridículo.
Mais ou menos assim, como uma camisola, deixaste de me
servir.
Fraca metáfora, não digas, eu sei, por outras palavras o
poderia ter dito, há sempre outras palavras, mas o que nós fomos não merece
mais palavras, nem esta carta envelope e selo de correio.
Raquel Serejo Martins
Raquel Serejo Martins
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