domingo, 10 de março de 2013

Da evidência da melancolia nos dias de chuvA




Se te perdoasse não saberia o que escrever.
E não sei o que escrever.
São demasiadas as coisas sobre as quais não podemos ou não devemos falar.
Sei que tenho saudade.

Uma saudade.
Eu ia a dizer imensa.
Mas não lhe sei o tamanho.

Da parte em ti que gosta de mim.
Em bom rigor.
Da parte em ti que acho que gosta de mim.

Contigo, o exercício da dúvida serve de salva-vidas.
A mim salvou-me a vida!

Está a chover.
Estou neste país há quase três anos e pela primeira vez vejo chover.
Acho que choveu antes mas eu não vi chover.
Agora duvido de tudo, fizeste-me assim.
Uma vez, os factos: o chão molhado, as árvores carregadas de água, as vidraças das janelas crivadas de gotas de água, como se um soldado com uma metralhadora quisesse tomar a casa de assalto.
Fui descalça até à praia.
Agora vivo perto do mar.
O cão feliz ao meu lado.
Agora tenho um cão.
Coloquei a hipótese de lhe dar o teu nome. Por graça, sabes, do tipo é tão feio que é bonito, mas percebi de imediato que o paradoxo não teria qualquer graça, apesar de ser um bicho silencioso, companheiro e fiel.
Decidi chamar-lhe Fígaro porque tenho que o tosquiar com frequência, percebes a graça, o paradoxo?
Não sei porque te conto estas coisas.
Coisas comezinhas.
Escrevo, talvez, porque está a chover.
É a primeira vez que chove.
É a primeira vez que escrevo.
Como se causa e consequência, talvez.
Parece-me que o jogo era verdade ou consequência, mas não importa.
Sinto a minha mão torpe, a caneta sem posição na mão.
Ao contrário, a mão sem posição para a caneta.
A minha letra sem a forma perfeita da minha letra.
Sem a forma imperfeita da minha letra.
Uma evidente inclinação para a esquerda, como se um vento de oriente, constante, morno, as palavras em deleite, como se girassóis, como se em espreguiçadeiras alinhadas na areia da praia.
Uma imperfeição que exasperava a minha professora primária.
A D. Deolinda, como Quixote, a combater, não moinhos, mas ventos, à base de toques de varinha, não mágica, concreta cana-da-índia, no meu cocuruto.
Um dia de audácia fermentada e premeditada, partimos a varinha.
Não foi fácil, apresentou uma rigidez que nos surpreendeu, que não nos devia ter surpreendido, pois era do conhecimento de todas as moleirinhas.
A varinha partida em três.
A D. Deolinda, incomodadíssima, olhou para meia dúzia de nós, os suspeitos do costume, nós olhámos para os sapatos, nos meus pés uns sapatos castanhos de atacadores, os laços quase desfeitos, nitidamente a precisarem de ser engraxados.
E dois dias depois outra varinha, que fazia o mesmo serviço igual de bem.

Parou de chover.
Sem chuva não tenho motivos para escrever.
Como se causa e consequência, talvez, como se verdade apenas.
Até o tamanho da saudade encolheu, mirrou, como o que faz a água em centrifugação nas máquinas de lavar às camisolas de lã. Encolhem, deixam de servir ao corpo, as mangas não pelos punhos, pelos cotovelos, a bainha pelo umbigo, ridículo.
Mais ou menos assim, como uma camisola, deixaste de me servir.
Fraca metáfora, não digas, eu sei, por outras palavras o poderia ter dito, há sempre outras palavras, mas o que nós fomos não merece mais palavras, nem esta carta envelope e selo de correio.

Raquel Serejo Martins


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