terça-feira, 12 de março de 2013

a-ver-outros-livros no Metro: Natália Correia

Olha como nos olha Natália, intensa como viveu, agora que morta se eterniza nas paredes marmóreas do Metro do Aeroporto, em Lisboa, traçada pelo caricaturista António. Olha como nos mira, com os seus olhos de intelectual, activista social e política - sim, foi deputada, claro que se recordam ainda -, jornalista e poeta. Assim mesmo, nunca gostou de poetisa, que a poesia sempre a entendeu assexuada.

Se da sua obra muito há a recordar, da poesia ao teatro, ao ensaio e ao romance, mais depressa se lembram da tertuliana convicta, polémica e assertiva que marcou a Lisboa cultural e literária dos anos 50 e 60 - já ouviram falar do Botequim, o seu famoso bar? - e ficou para a história da televisão em Portugal com o programa "Mátria". Espírito livre, interventivo, mulher acima de tudo (a mais linda de Lisboa, disse José Augusto França), casou-se quatro vezes: as duas primeiras relações breves, a terceira com o seu grande amor, Alfredo Luís Machado, a última aos 67 anos, por conveniência, com o seu colaborador e amigo Dórdio Guimarães. Meros três anos depois morria, fará vinte anos no sábado. Um ataque cardíaco, quando voltava do Botequim.


Natália de Oliveira Correia (S. Miguel, Açores, 13 setembro 1923 - Lisboa, 16 março 1993). Deixo que seja ela a falar de si mesma por um instante.

"Auto-retrato

Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea . Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis."

in Poemas, 1955

E, como não consigo escolher entre outros dois meus favoritos, deixo-vos os dois. Não me hão-de crucificar por isso, certamente. Recordar Natália é uma viagem saborosa.

"Poema Involuntário

Decididamente a palavra
quer entrar no poema e dispõe
com caligráfica raiva
do que o poeta no poema põe.

Entretanto o poema subsiste
informal em teus olhos talvez
mas perdido se em precisa palavra
significas o que vês.

Virtualmente teus cabelos sabem
se espalhando avencas no travesseiro
que se eu digo prodigiosos cabelos
as insólitas flores que se abrem
não têm sua cor nem seu cheiro.

Finalmente vejo-te e sei que o mar
o pinheiro a nuvem valem a pena
e é assim que sem poetizar
se faz a si mesmo o poema.
"

in "O Vinho e a Lira"

~ ~ ~ ~

"O Testamento dos Namorados

Escolhamos as coisas mais inúteis
o verde água o rumor das frutas
e partamos como quem sai
ao domingo naturalmente.

Deixemos entretanto o sinal
de ter existido carnalmente:
da tua força um castiçal
da minha fragilidade um pente.

Esse hieróglifo essa lousa
deixemos para que uma criança
a encontre como quem ousa
um novo passo de dança.
"

também in "O Vinho e a Lira"

Termino o a-ver-outros-livros no Metro de hoje com links. Uma espécie de vales para mais viagens a fazer com tempo e atenção. Poemas ditos e alguns até cantados pela própria Natália Correia, vários dela. Música, arranjo e direcção musical do maestro António Victorino D'Almeida‎. São 15 vídeos. O disco "Improviso", de 1975. Uma delícia.

1 - "A Donzela de Biscaia"
2 - "Queixa das Almas Jovens Censuradas"
3 - "Quarto"
4 - "Telex"
5 - "Árvore Geneológica"
6 - "A Rapariga do Sweater Vermelhor"
7 - "Fado de Diogo Ary dos Santos jovem lusíada tocador de guitarra que morreu de amor"
8 - "Núpcias Químicas"
9 - "Caosmonáutica"
10 - "Rebis"
11 - "O Encontro"
12 - "Uma Laranja para Alberto Caeiro"
13 - "A Política do Dia"
14 - "Cabelos, os Meus Cabelos"
15 - "Amanhece"

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